Em um cenário onde a inteligência artificial (IA) aparece como uma solução universal para todos os problemas, é preciso lembrar que mesmo pequenas mudanças tecnológicas podem trazer benefícios imediatos e relevantes para a população. Foi esta uma das mensagens iniciais do especialista em tecnologia Ronaldo Lemos, durante um painel no Cidade CSC, maior evento de cidades inteligentes da América Latina.
Especialista em tecnologia e cientista-chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Lemos conversou sobre a transformação digital no setor público com Tatiana Roque, secretária de Ciência e Tecnologia da Prefeitura do Rio de Janeiro. Inteligência artificial, é claro, foi o principal tema.
Mas antes que os municípios brasileiros possam mergulhar no potencial da IA, ele fez uma reflexão com base na realidade chinesa, referência no campo. Por lá, disse ele, o desenvolvimento tecnológico foi construído em cima de quatro pilares.
"Processamento de grandes volumes de dados, o que era a 'IA de 15 anos atrás', computação em nuvem, a 'IA de 12 anos atrás', internet das coisas, a 'IA de sete anos atrás', e a inteligência artificial mesmo, a 'IA de dois anos atrás'. Essa já é uma tecnologia de 2023", disse. Pode parecer brincadeira, mas a mensagem é sério: não adianta querer pular etapas.
"Para o gestor público inovar, há uma trajetória na adoção e oferta de serviços básicos e elementares", defendeu Ronaldo.
Isso não significa que IA seja uma tecnologia distante. No Rio de Janeiro, Tatiana contou que está em desenvolvimento um chatbot para facilitar o acesso da população aos serviços oferecidos pela prefeitura e o atendimento a demandas diversas. Para ela, isso se traduz num salto de cidadania digital. "Isso pode fazer com que as pessoas se sintam mais cuidadas pelos gestores", afirmou Tatiana.
É uma via de mão dupla. Assim como as cidades podem usar IA para facilitar a vida da população, as pessoas também podem se apropriar dessa tecnologia como uma facilitadora na utilização de serviços públicos. O ITS, por exemplo, construiu uma biblioteca chamada 'Prompts de Direitos'.
É um arquivo de comandos de IA que qualquer pessoa pode utilizar para requisitar diversos serviços públicos, como um pedido de alvará, por exemplo. Nesse sentido, a IA faz às vezes de "despachante universal", definiu Ronaldo Lemos. Do lado do governo, o desafio é receber bem essas demandas.
Nem toda IA é igual
De 2023 para cá, o hype da IA gira em torno de modelos generativos, como o ChatGPT. No entanto, diversos outras técnicas de IA também podem ser utilizados por governos municipais. Lemos trouxe o exemplo de uma solução desenvolvida no Piauí que permite fazer boletins de ocorrência via áudios de WhatsApp.
"É algo simples que tem um impacto fundamental e aproveita uma ferramenta que a maior parte das pessoas no Brasil usam", afirmou.
Massificar iniciativas como essa, no entanto, envolve uma série de desafios. No âmbito federal, o governo lançou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), que prevê investimentos de R$23 bilhões na área. Só que para transformar isso em realidade é necessário um modelo de governança mais robusto, com integração e trabalho conjunto entre governo, setor privado, academia e sociedade, algo distante da realidade da maior parte do País.
Além disso, ainda há uma subutilização do combustível da IA: os dados. "Nós temos o PBIA, mas não há ainda um plano nacional de dados", disse Ronaldo. Para exemplificar a importância disso, ele cita as notas fiscais eletrônicas. Segundo o especialista, caso fosse possível analisar em tempo real as informações das NF-e, seria possível criar novas maneiras de medir a inflamação de forma granular, mapear competitividade no País, entre diversos outros benefícios
"Como essa, há inúmeras outras bases de dados que podem gerar valor extraordinário, mas precisamos entender como tirar esses dados de silos", afirmou.
Tecnologias soberanas
Para Tatiana, um ponto fundamental por trás dessa discussão é como garantir a soberania tecnológica e de dados para as cidades que investem em transformação digital. Recém-chegada de um congresso em Genebra, ela contou que este é um problema mundial, maximizado por um contexto global em disputa.
Por isso, diz Tatiana, é fundamental pensar em um política integrada de desenvolvimento de IA que considere tanto aplicações de serviço quanto infraestrutura. No Rio, uma das formas que isso têm sido feito é aproveitando o modelo de Contrato Público para Solução Inovadora, previsto no Marco Legal da Startup, que facilita a contratação de empresas de tecnologia para projetos tecnológicos inovadores.
Usando em excesso, o termo 'inovação' corre o risco de perder significado. Mas um plano de Tatiana para o Rio de Janeiro devolve o peso a essa palavra. "Nós queremos criar digital twins de áreas vulneráveis do Rio", contou.
Digital twins são modelos digitais de uma região real onde é possível fazer simulações e fazer cenários futuros. No Rio, o objetivo seria utilizar dados diversos para modelar o resultado de eventos climáticos extremos em áreas como a Rocinha. A partir daí, a ideia é criar uma plataforma integrada onde seria possível discutir soluções junto à população.
"Isso nos permitiria abrir debates difíceis de forma informada com as pessoas", explicou Tatiana, para quem o projeto é um sonho. Mas um sonho com data para ser apresentado: a Conferência da Década dos Oceanos em 2027, no Rio.