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Coronavírus

Brasil tem queda de 13,5% nas consultas pré-natal por causa da pandemia; entenda os riscos

Medo de infecção pela covid-19 e remanejamento de serviços de saúde prejudicaram assistência a grávidas e bebês; identificação precoce de doenças é importante, dizem médicos

26 jan 2022 - 22h06
(atualizado em 3/2/2022 às 19h33)
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RIO - Além de milhões de infectados com sintomas respiratórios, a pandemia de covid-19 teve impacto direto na saúde de gestantes e recém-nascidos no Brasil. Estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostra que, em 2020, o Sistema Único de Saúde (SUS) fez 842 mil consultas de pré-natal a menos do que no ano anterior. Foi uma queda de 13,5%. Para especialistas, o medo da infecção foi o principal motivo do afastamento das grávidas.

Em 2019, o SUS fez 6,2 milhões de atendimentos a gestantes, ante 5,3 milhões no ano seguinte, o primeiro da pandemia. A redução das consultas das grávidas tem impacto direto na realização de exames. Alguns podem ser cruciais para a saúde do bebê, como a ultrassonografia obstétrica. Outros são fundamentais para a mãe, como os testes de diagnóstico de HIV, sífilis, hepatite B, entre outros, que são rotina nessas consultas.

"A assistência preventiva, de qualidade, ainda é considerada inadequada, tanto em termos de alcance da população em idade reprodutiva quanto da qualidade em si", atesta o especialista Ademar Carlos Augusto, coordenador da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do CFM. "O que já não era bom ficou pior ainda com a chegada da pandemia. Nosso levantamento mostra que tivemos redução significativa no número de consultas e oferta de exames. Provavelmente houve agravamento ainda maior no ano passado, com a chegada das cepas mais agressivas", diz.

"O acesso das pessoas à rede de atenção primária já é uma dificuldade e, com a pandemia, foi ainda mais prejudicado; no caso da atenção à gestação foram menos consultas e, consequentemente, menos exames complementares indicados nessas consultas", resume o vice-presidente do CFM, o pediatra Donizetti Giamberardino. "O vírus (Sars-CoV-2) agrava a desigualdade. Os lugares com mais dificuldade foram os que tiveram maior redução de acesso. Nos Estados que tinham infraestrutura mais robusta, a população sofreu menos."

Utilizada para auxiliar no diagnóstico de possíveis má-formações fetais e para obter informações importantes, como idade gestacional, análise morfológica, aspectos da placenta, sexo, batimentos cardíacos e problemas cromossômicos, a ultrassonografia obstétrica caiu cerca de 12% em 2020. Foi o maior recuo registrado nos últimos dez anos.

Importantes exames diagnósticos que costumam ser feitos na gestante no pré-natal também registraram quedas muito significativas em 2020. O teste para detecção do vírus da Aids recuou 38%. Quando o HIV é detectado precocemente na gestante, é possível impedir a sua transmissão ao bebê. O número de testes diagnósticos para hepatite B caiu 38%.

No caso da sífilis, sexualmente transmissível e cuja incidência vem aumentando nos últimos anos, a queda foi de 34%. Outros exames essenciais que também tiveram redução foram o da hepatite C (menos 21%) e o que diagnostica o câncer de colo de útero (menos 45%).

"Como médico da ativa, que dá plantão em maternidades, posso dizer que temos percebido, de um tempo para cá, um aumento de casos das doenças sexualmente transmissíveis, como sífilis e HIV", afirma Ademar Carlos Augusto. "Temos visto também muitos casos de sífilis neonatal e bebês soropositivos ao nascer. É natural que isso tenha aumentado durante a pandemia, mas ainda não temos esses dados."

Segundo o levantamento, "ainda não é possível traçar com clareza os efeitos diretos da pandemia nos indicadores de morbidade e mortalidade de mulheres e bebês". Mas, prossegue o documento, "as informações sobre os números de consultas e exames levantados pelo CFM já alertam para a necessidade de mais estudos sobre os possíveis desdobramentos epidemiológicos da covid-19 na população brasileira".

A desigualdade do País fica mais uma vez explícita nos números. O impacto da pandemia foi bem menor nas Regiões Sudeste e Sul e muito maior em Norte, Nordeste e Centro-Oeste. "A pandemia tornou mais explícita a importância da atenção primária e como ela deve ser valorizada", afirma Gianberardino. "E esse deve ser o grande papel do SUS no nosso País: combater a desigualdade", acrescenta.

Cardiopatia grave quase mata bebê no Tocantins

Em regiões remotas, mesmo com a melhora nos indicadores da pandemia e o relaxamento da quarentena, o acesso a consultas e exames ainda permanece um gargalo. A respiração do pequeno Heliarquim Santos acelerou demais (taquipneia) logo após seu nascimento, em dezembro de 2021, na maior maternidade pública do Tocantins, Dona Regina, em Palmas. Sobreveio um quadro de picos de pressão arterial, roxidão e o recém-nascido precisou ser transferido para uma UTI neonatal suplementar, contratada na rede particular, pelo governo estadual.

No dia seguinte, foi submetido a um ecocardiograma. Só então a mãe, Nézia Santos, uma doméstica de 30 anos, descobriu que o filho tinha uma cardiopatia complexa. Moradora de Porto Alegre de Tocantins, a 291 quilômetros da capital, relata dificuldade de acesso a exames e se recorda de ter feito só uma ultrassonografia pelo SUS. Contar ter feito outras, particulares, pagas com o dinheiro que recebe ajudando uma irmã em uma lanchonete.

"Ninguém descobriu nenhum problema com meu bebê. Não teve consulta profunda nem tinha recursos (equipamentos e exames). Toda consulta que fiz me falaram que tava tudo bem", relembra ela, que tem mais três filhos. O pré-natal foi feito com um biomédico da equipe de saúde da família, único profissional à disposição. No quarto mês de gestação, Nézia teve um sangramento grave e chegou a ser informada de que teria ocorrido um aborto. O bebê, que conseguiu a cirurgia agora após uma ação movida na Justiça pela Defensoria Pública, segue na UTI e seu quadro é delicado.

Secretário da Saúde do Tocantins, Afonso Piva reconhece dificuldades. "Houve prejuízo no atendimento às grávidas, em razão da priorização dos atendimentos de pacientes da covid-19 na rede pública", afirma. "Muitas mulheres deixaram de ir às unidades de saúde para realizar as consultas de pré-natal e puericultura, em função do medo de se contaminarem", conta.

Além disso, ele destaca as limitações do acompanhamento feito de forma online, o que, segundo ele, motivou uma queda na taxa de cobertura vacinal de rotina e vigilância do crescimento e desenvolvimento das crianças. Piva cita ainda como efeitos a suspensão do direito das gestantes a ter um acompanhante no momento do parto e a queda na cobertura de programas de triagens universais, como o Teste do Pezinho, que ficou suspenso no Tocantins.

Ministério da Saúde diz haver alta de consultas

Em nota, o Ministério da Saúde disse "que os bancos de dados oficiais da pasta registram um aumento no número de consultas de pré-natal na Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde (SUS)". Em 2020, de acordo com o órgão, foram 5.307.093 consultas, e em 2021, 6.335.083, sendo em no ano de 2019, 4.434.760 consultas pré-natal realizadas."

"Em relação aos exames de sífilis e HIV, ao contrário do informado pela matéria, houve um aumento na realização dos testes rápidos em gestantes para detecção das doenças. O número de testes para sífilis passou de 527.761 em 2019 para 736.434 exames realizados em 2020, representando um aumento de 39,5%; em 2021 foram 963.380 procedimentos, apontando um aumento de 30,81%, comparados a 2020. A detecção do HIV também demonstra aumento desde 2019, com 524.866 exames realizado, e 725.255 em 2020, apontando um acréscimo de 38,17%. Já em 2021, foram 955.381 testes, um incremento de 31,73% em relação a 2020", acrescentou.

Apenas para os exames de imagem, conforme o ministério, foi observada redução de registros nas bases de dados do Ministério de, aproximadamente, 10% em relação ao ano de 2019.

"O Ministério da Saúde está mobilizado, desde 2020, no enfrentamento da pandemia, prestando apoio técnico aos gestores e profissionais de saúde de todas as unidades da Atenção Primária e maternidades, na implementação de ações e estratégias para qualificar o cuidado materno e infantil, além de investimentos na ordem de mais de R$ 2 bilhões a estados, municípios e Distrito Federal, para garantir a assistência integral à saúde das mulheres, gestantes e puérperas no País', concluiu a nota. /COLABOROU LAILTON COSTA, ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Estadão
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