Quem navega por redes sociais ou grupos de mensagens que espalham desinformação sobre as mudanças climáticas pode deparar com postagens que dizem que o gás dióxido de carbono (CO2) não está interferindo no aquecimento do planeta. Mas isso não é verdade e faz parte de uma narrativa chamada de negacionismo climático.
O Estadão Verifica observou em grupos do Telegram uma estratégia comum em conteúdos que contestam os impactos negativos do CO2: a menção a supostos estudos científicos ou a cientistas para conferir uma aparência de legitimidade e credibilidade a argumentos que, na realidade, fogem ao próprio consenso da ciência.
Uma das mensagens, por exemplo, dizia que uma pesquisa "desmentiu a narrativa de que as emissões humanas de dióxido de carbono (CO2) causam aquecimento global".
Outra afirmava que, de acordo com um grupo formado por 1.900 cientistas, a mudança climática não é causada pelo CO2.
Quem encontra mensagens como essas precisa ficar atento a dois aspectos. Primeiro: as evidências científicas não são construídas levando em consideração um único estudo. Segundo: nem todo cientista tem preparo intelectual para falar do clima e suas alterações.
Os profissionais que se dedicam a estudar esse assunto são chamados de cientistas climáticos. De cada 100 especialistas em mudanças climáticas, 97 concordam que vastas emissões de gases de efeito estufa ocasionadas pela atividade humana estão alterando significativamente as temperaturas globais.
Se 97% dos profissionais dedicados a fabricar aviões lhe dissessem que determinada aeronave não é segura, você voaria nela? Acreditar que o CO2 não interfere na mudança climática é como embarcar em uma viagem perigosa.
O CO2 absorve parte da energia infravermelha (ou seja, calor) que a Terra reflete para o espaço ao receber a luz do sol. Por isso, ele é classificado como um dos gases do efeito estufa, um fenômeno natural que por si só não é ruim. Estima-se que, sem o efeito estufa, a temperatura média do planeta (atualmente em 15ºC) seria de -18°C. O perigo, alertam os especialistas, é que os seres humanos estão potencializando esse fenômeno com atividades como a queima de combustíveis fósseis, que aumenta de forma rápida e artificial a quantidade de CO2 na atmosfera.
Quem não tem propriedade para falar
Uma das mensagens negacionistas localizadas pelo Verifica em grupos de Telegram cita trecho de uma entrevista de um professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia (Estados Unidos). O doutor em química Digby D. Macdonald falou em fevereiro deste ano para o Epoch Times, um veículo que nos últimos anos tem se destacado pela disseminação de desinformação em escala global.
O doutor em química, que faleceu meses depois da entrevista, negou que o CO2 seja um gás poluente e criticou os esforços para reduzir sua emissão na atmosfera. Quem compartilhou a entrevista fez questão de dizer que Macdonald foi indicado em 2011 e 2023, respectivamente, aos prêmios Nobel de química e Enrico Fermi do Departamento de Energia dos Estados Unidos.
O que a postagem não revela é que o CO2 não era objeto de estudo de Macdonald. Não constam entre as publicações mais relevantes dele pesquisas relacionadas à química atmosférica, campo de estudo responsável por entender fenômenos como o efeito estufa. Em declaração feita por ele mesmo, Mcdonald informou que suas áreas de especialização incluíam eletroquímica, termodinâmica, mecânica da fratura aplicada e ciência da corrosão.
Outra mensagem localizada pelo Verifica em um grupo de Telegram, divulga uma entrevista que o professor emérito de física da Universidade de Princeton William Happer concedeu ao programa Sky News Australia, em setembro de 2023. A postagem diz que Happer "discutiu equívocos comuns na ciência climática, especialmente a reputação negativa dada ao CO2".
Assim como o químico Digby D. Macdonald, o professor Happer não é especialista em ciência climática. Ele é uma referência em física atômica. Reportagem publicada pela rádio norte-americana NPR explica que os conhecimentos dele pavimentaram duas importantes contribuições científicas: uma delas possibilitou capturar imagens muito melhores dos pulmões das pessoas; a outra permite que os astrônomos vejam as estrelas com mais nitidez.
Em setembro de 2018, ele se tornou membro do Conselho de Segurança Nacional da gestão de Donald Trump. Uma das expectativas era que Happer liderasse uma movimento de contestação das evidências sobre mudança climática de dentro da Casa Branca. Ele deixou o cargo um ano depois, após assessores de Trump avaliarem que o ataque contra a ciência climática poderia ser prejudicial ao presidente durante a campanha de 2020.
Em 2015, Happer fundou a CO2 Coalition, sediada na cidade de Arlington, no estado da Virgínia, para promover mais consumo de combustíveis fósseis. O grupo, que tinha o químico Digbby D. Macdonald entre seus membros, defende enganosamente que o aumento dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera pode beneficiar as pessoas.
A coordenadora do NetLab, um laboratório de pesquisa em internet e redes sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Nicole Sanchotene, explica que cada plataforma (Facebook, Linkedln, Whatsapp, Telegram, Instagram, sites) tem um papel específico no ecossistema da desinformação digital. Aplicativos de mensagem, como o Telegram, servem para testar a receptividade de narrativas, avalia ela. "Lá há uma presença maior de conteúdo com conspirações mais visíveis, mais explícitas", explicou, em entrevista ao Verifica.
Gargalos da comunicação da crise climática
A pós-doutora em química e pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) Luciana Vanni Gatti diz que é pura ignorância defender mais emissões de CO2. "Não me interessa se é um cientista renomado em alguma outra área. Na área climática, é um ignorante", disse ela.
Gatti faz parte do grupo dos 97% de cientistas climáticos que concordam que o ser humano está causando o aquecimento global. Há mais de 20 anos, ela realiza pesquisas sobre mudanças climáticas, tendo como objeto de estudo a Amazônia. Gatti se tornou especialista em medir, com alta precisão, os gases de efeito estufa que pairam sobre a floresta. Um de seus estudos foi capa, em 6 de fevereiro de 2014, da revista científica Nature.
"Eu acho que é um dever moral do cientista contar para a sociedade tudo o que ele aprendeu em suas pesquisas, com uma linguagem que qualquer um entenda", disse Gatti em entrevista ao Verifica. "Ainda mais o cientista climático, porque, se as pessoas não entenderem o que nós estamos fazendo de errado, nós não teremos a menor chance de escapar do colapso climático."
Gatti explica que, quanto mais CO2 se emite na atmosfera, mais energia infravermelha fica retida aqui, e é por isso que o planeta Terra está esquentando. "A primeira vez que esse fato veio à tona faz mais de um século. Não sou eu quem está falando isso. O meu avô já tinha como saber isso se ele tivesse acesso às informações científicas", afirmou.
O desafio da divulgação científica sobre mudanças climáticas foi tema da tese da doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Vanessa de Cassia Witzki Colatusso. Uma das conclusões do estudo é que, além da falta de tempo para se dedicar à tarefa de dialogar com a sociedade, os cientistas não têm preparo para falar de forma fácil com as pessoas sobre os seus achados.
"O que não falta é dado para comprovar as mudanças climáticas. Temos um consenso científico sobre o tema", afirma Colatusso. Mas o excesso de informações disponíveis sobre o tema pode até mesmo atrapalhar. Em um artigo sobre estratégias de desinformação de grupos negacionistas no Telegram, a pesquisadora escreveu que "quanto mais informação as pessoas têm sobre as mudanças climáticas, mais distorcem o assunto para servir aos próprios interesses".
Essa estratégia de distorcer as informações científicas disponíveis chama-se ignorância motivada. O objeto é proteger as ideologias a ponto de ignorar o que é cientificamente consensual e manter as pessoas afastadas dos fatos.
O artigo explica que, na ignorância motivada, o foco é a proteção dos valores e crenças dos grupos negacionistas, "pois aquilo que é contrário ao que eles têm como verdade insulta e é desagradável". Pouco importam os consensos científicos.
Em entrevista ao Estadão Verifica, Vanessa avaliou que a comunicação sobre a emergência climática não está conseguindo fazer com que as pessoas entendam o impacto do aquecimento global na vida delas. Colatusso explicou que o negacionismo climático faz com que as pessoas fiquem paralisadas diante de um cenário que exige ação. Segundo ela, esse fenômeno não pode ser considerado um contraponto científico porque não se baseia em comprovações plausíveis.
Este texto faz parte de uma série de reportagens que o Estadão Verifica está publicando sobre desinformação climática que circula no Brasil. O tema ganhou relevância devido à realização da COP 30, em Belém. As postagens citadas fazem parte de uma base de dados do Telegram montada pelo pesquisador Ergon Cugler, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DesinfoPop/FGV).