“Nem todo cangaceiro era pobre”, diz historiador sobre Guerreiros do Sol
Contratado como consultor da novela da Globo, Robério Santos elogia a ampliação da imagem do sertão para além da pobreza
Mostrar ricos e pobres em uma abordagem historicamente embasada equilibra a representação da realidade. Embora o cenário do cangaço seja região pobre, existe mais do que matança e miséria. A capacidade de mostrar nuances seria o grande trunfo de Guerreiros do Sol, diz pesquisador.
O clichê de miséria e morte reduz a complexidade do cangaço. Por isso, Guerreiros do Sol fez uma “escolha corajosa” ao mostrar ricos e pobres, avalia o historiador Robério Santos, consultor da Globo para a novela.
“É inegável que o cangaço tenha assolado as regiões pobres do país”, diz Santos. Porém, Guerreiros do Sol mostra o coronel rico, a mulher letrada, o comerciante, além da pobreza dos retirantes tratados como lixo ao serem impedidos de entrar na bodega do Bosco.
“Ao equilibrar esses dois aspectos, a desigualdade aparece como um fator presente, mas não como o único foco, como aconteceu em outras produções”, acredita Santos. Ele pesquisa os grupos criminosos do sertão há 25 anos. Tem livros publicados e mantém o canal O Cangaço na Literatura.
Para Santos, o cangaço é “nosso maior tema histórico-popular”. Na entrevista ao Visão do Corre, ele fala de audiovisual, das relações entre crime, pobreza e riqueza, de cangaceiros e da curiosa história do primeiro filme brasileiro sobre o cangaço, que completa 100 anos.
Como foi a consultoria?
No início de 2023, fui contatado pela Rede Globo para fornecer informações e referências. Fui fazendo fotos de objetos, roupas, periódicos, alimentando a produção. Coloquei minha coleção à disposição, tenho livros raros, como o clássico sergipano Lampião, o Último Cangaceiro, autografado. Também fomos aos Estúdios Globo para um bate-papo com a equipe e o elenco.
A pesquisa é um ponto forte de Guerreiros do Sol?
O diferencial foi contratar especialistas que, mesmo sabendo que os nomes dos personagens seriam fictícios, garantiram que os acontecimentos fossem reais: as falas o mais próximas possível da realidade e os cenários, críveis. O sucesso da novela se deve a essa proximidade com o real, por isso acredito que é um divisor de águas, tanto no aspecto visual, quanto em sua narrativa.
Se o cangaço tem tantas formas de expressão, como pode ser considerado marginal?
Por ser um tema controverso, muitas vezes desprezado por tratar de criminosos. O cangaço não se resume a crimes.
Mas está associado à pobreza.
Nem todo cangaceiro era pobre antes de entrar no movimento — um exemplo clássico é Antônio Silvino. Zé Baiano era o cangaceiro mais rico, hoje não teríamos nem como calcular sua fortuna, talvez na casa dos milhões de reais, se convertido atualmente.
Nas regiões de conflito com o cangaço, como ficava o povo?
O sertão nordestino agonizava nas mãos desses personagens, mas também sofria com a repressão da polícia. O povo pobre vivia entre a cruz e a espada. O pouco que tinham era, muitas vezes, levado pelos cangaceiros, o que deixou uma marca triste na história.
O bilhete do cangaceiro Josué exigindo comida aconteceu na vida real?
Foi ficcional, mas no Rio Grande do Norte e na Paraíba existiu um cangaceiro chamado Jesuíno Brilhante, que ia além de meramente mandar bilhetes exigindo comida aos famintos: ele mesmo assaltava cargas de víveres e distribuía aos pobres.
O uso do termo “novo cangaço” tem sentido?
Ele surgiu em 1922, em Minas Gerais, para designar grupos criminosos que atuavam no interior, praticando crimes como assassinatos e assaltos. A partir da década de 1980, a mídia intensificou o uso do termo, por ele ser chamativo e gerar engajamento. O cangaço é, sem dúvidas, nosso maior tema histórico-popular.