Leptospirose no RS: 'Quase não conseguia botar o pé no chão, mas precisava limpar minha casa'
Vítimas da maior enchente da história do Estado relembram o medo e as perdas em decorrência da doença
"Achava que a covid tinha sido a pior doença que tinha tido, mas não foi. A leptospirose foi terrível", conta a costureira Tatiane Salazar, de 54 anos, moradora do bairro Sarandi, em Porto Alegre, um dos mais afetados pela maior enchente que o Rio Grande do Sul enfrentou em sua história.
Os casos dessa doença bacteriana, transmitida pelo contato com água ou solo contaminado por urina de roedores infectados, disparou em 2024, ano do desastre, ultrapassando 1,3 mil registros e 55 mortes, mais do que o dobro do observado em 2023, quando o Estado já havia enfrentado outra enchente.
Tatiane consegue listar diferentes momentos em que pode ter ocorrido a contaminação, a começar por 4 de maio. Nesse dia, ela foi resgatada em casa e o barco em que estava, disponibilizado por um vizinho, virou.
A água avançou até o segundo andar da casa dela. "Perdi tudo", lembra. Tatiane ficou cerca de 45 dias em um lar cedido por um amigo, mas quase todos os dias dava um jeito de ir até sua residência. "Minha sensação era de que, se não viesse para o bairro, estaria abandonando minha casa, meu lar."
Mas foi quando a água já havia abaixado e ela enfrentava a lama para poder regressar definitivamente que os sintomas apareceram. "Senti um odor muito forte de urina de rato em casa", conta a costureira, que chegou a encontrar ninhos de ratos dentro das paredes.
Seguindo orientações de saúde, ela usava máscara, botas e luvas. "Mas no meio da limpeza as luvas rasgam, tu esfrega a mão no rosto, faz isso no automático, nem te toca do que fez", compartilha.
Dois ou três dias depois do início da faxina, Tatiane começou a sentir muita dor no corpo e cansaço. Chegou a ir a uma unidade básica de saúde e relatar que estava sentindo dor na panturrilha, um sintoma clássico da leptospirose, mas a profissional que a atendeu não considerou a possibilidade da doença. "Ela falou que era dor muscular de tensão, de estar caminhando sem parar."
Tatiane voltou à limpeza no Sarandi e só buscou atendimento novamente, dessa vez numa unidade de saúde improvisada em um contêiner no seu bairro, pela insistência da mãe. Lá, ao medir a temperatura dela, a médica foi categórica: "Você tem todos os sintomas de leptospirose".
A costureira nunca recebeu o resultado do exame de sangue que realizou em seguida e não foi orientada a tomar antibiótico. "(A médica) Me deu a medicação e falou: 'Descansa para te recuperar'."
"Era uma dor na panturrilha de não conseguir botar o pé no chão, parecia que estavam te arrancando (a panturrilha)." Tatiane, porém, sentia que não tinha tempo para repousar. Precisava devolver a residência emprestada pelo amigo e trazer sua família de volta.
"No começo, não conseguia levantar. Aí eu tomava remédio, passava a febre, dava uma respirada e ia lavar o tapete, ia lavar uma parede", relata. "Não conseguia comer nada. Nessa função, emagreci 19 quilos."
Tratada para dengue, ela tinha leptospirose
Mesmo pessoas que não tiveram as casas invadidas pela água foram afetadas pela leptospirose. É o caso da atleta Luisa Giampaoli, de Pelotas. A corredora morreu em julho do ano passado, aos 29 anos, em decorrência da doença. "Não sabemos (como ela pegou)", fala o marido, Eduardo Schmit. "Moramos numa parte mais alta (da cidade)."
Luisa era o que marido chama de "profissional-atleta", pois levava uma jornada dupla de treinos e trabalho, e chegou a integrar a seleção brasileira de atletismo no Campeonato Ibero-Americano, em maio de 2024.
Dois meses após realizar o sonho de competir com a seleção, porém, a alegria deu lugar a um périplo agoniante e a uma perda difícil de compreender.
O prontuário compartilhado com a reportagem indica que tudo começou com dores de cabeça, tonturas e cansaço no dia 21 de junho. Entre idas e vindas a uma unidade de pronto atendimento, o número de plaquetas no sangue diminuiu e ela passou a ser tratada para dengue.
Luisa foi internada e passou por exames, mas todos os resultados vieram negativos. Assim como dengue, o prontuário indica que havia suspeita de leptospirose, mas só foram prescritos antibióticos mais de dez dias após o início dos sintomas.
A atleta chegou a receber alta após uma melhora súbita e voltou para casa, porém poucos dias depois o quadro piorou. "Ela acordou sem me conhecer, sem conseguir falar ou comer".
Novos exames foram feitos e um deles deu positivo para leptospirose. Isso ocorreu poucos dias antes de Luisa ser transferido para uma unidade de terapia intensiva, onde faleceu.
O marido acredita que houve negligência e pretende processar as unidades de saúde. O Estadão entrou em contato com a Prefeitura de Pelotas e com o Hospital Universitário São Francisco de Paula, onde ela ficou internada, mas não obteve resposta.
Luisa deixou o marido e um filho de seis anos. Eduardo continua correndo em homenagem à esposa. "Para manter vivo o legado dela", explica.
Medo continua
Mesmo um ano depois do desastre, gaúchos ainda vivem com medo da doença.
"Nunca tínhamos visto ratos, nos 16 anos que moramos aqui (em casa), antes da enchente", diz Maria Cláudia Lisboa, de 54 anos.
Ela, a filha e o marido, moradores de Guaíba, na região metropolitana, tiveram leptospirose em dezembro. Em fevereiro, Maria voltou a ser diagnosticada com a doença. Temendo que ratos pudessem estar fazendo ninho em um chalé que usava como lavanderia, decidiu derrubá-lo. "Tinha muita história ali, mas eu tinha certeza que precisávamos nos desfazer dele, por uma questão de saúde."
Mesmo com o chalé demolido, Maria segue com um novo hábito: antes de cozinhar ou servir qualquer alimento, lava novamente todos os utensílios. "Vai que um rato passou e eu não vi. É muito apavorante."