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Impasse com navios iranianos no Paraná pode ter 'impacto desnecessário' e prejudicar exportações, dizem especialistas

Desde o início de junho, embarcações aguardam abastecimento no porto de Paranaguá para transportar 100 toneladas de milho para o país islâmico, mas Petrobras se nega a fornecer combustível por temer represálias dos Estados Unidos.

23 jul 2019 - 18h11
(atualizado em 24/7/2019 às 04h29)
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Petrobras se nega a fornecer combustível a navios iranianos por temer represálias dos EUA
Petrobras se nega a fornecer combustível a navios iranianos por temer represálias dos EUA
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O impasse com os dois navios iranianos que aguardam abastecimento no porto de Paranaguá, no Paraná, para transportar 100 mil toneladas de milho para o país islâmico pode comprometer relações comerciais que são "francamente favoráveis" ao Brasil, e impor perdas ao agronegócio brasileiro, dizem analistas.

Desde o início de junho, os navios Bavand e Termeh aguardam o abastecimento na área de fundeio do porto paranaense, o primeiro já carregado com 48 mil toneladas de milho, aguardando para fazer o transporte até o país islâmico.

Mas a Petrobras se negou a fornecer o combustível, alegando que ela própria poderia sofrer represálias americanas porque os navios são alvo de sanções dos Estados Unidos contra o Irã, e estão na lista negra do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos - embora o milho, sendo um alimento, não esteja sujeito a sanções.

Para especialistas consultados pela BBC News Brasil, o impasse reflete o desejo do governo brasileiro de sinalizar apoio a Donald Trump e estreitar as relações com os EUA, indicando que aceita as sanções que o país norte-americano vem impondo unilateralmente ao Irã - mas sem calcular os efeitos colaterais.

"O Brasil não permitia que suas relações comerciais com países fossem influenciadas por decisões tomadas por terceiros, e agora estamos vendo exatamente isso, concordando com as sanções impostas pelos EUA contra o Irã", diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo.

Para Stuenkel, a situação pode ter um "impacto desnecessário" sobre a economia brasileira que não está não sendo calculado pelo governo. "Estamos falando de números altos, de uma relação superavitária. O Brasil não pode se dar ao luxo de tomar uma atitude assim no meio da situação econômica atual, que é muito precária", considera.

O Irã é hoje um importante importador de grãos e carne do Brasil. A balança comercial que pende fortemente para o Brasil: em 2018, o país vendeu US$ 2,26 bilhões para o país do Golfo Pérsico, principalmente milho, soja e carne. Enquanto isso, importou US$ 39,9 milhões, a maioria em tapetes persas, pistache e porcelana. O superávit foi de US$ 2,22 bilhões.

Impasse no mar

Os navios Bavand e Termeh esperam o reabastecimento no porto de Paranaguá desde o início de junho, estacionados em frente ao cais, a cerca de 1 km um do outro. Eles foram contratados pela empresa brasileira Eleva Química Ltda. e chegaram ao Brasil trazendo ureia do Irã, matéria-prima usada como fertilizante agrícola.

A carga seria dada em troca da compra das 100 mil toneladas de milho, avaliadas em cerca de R$ 100 milhões. O Irã é o quinto maior comprador do grão produzido no Brasil.

Navios vão transportar 100 toneladas de milho para o país islâmico
Navios vão transportar 100 toneladas de milho para o país islâmico
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O primeiro navio já foi carregado no porto de Imbituba, em Santa Catarina, e o segundo ainda aguarda para seguir até lá, e receber a outra metade da carga.

A Petrobras, entretanto, vem se negando a fazer o reabastecimento, alegando que pode ser alvo de punições de Washington. De acordo com a empresa, os navios estão na lista de entidades sancionadas pelos EUA.

"Caso a Petrobras venha a abastecer esses navios, ficará sujeita ao risco de ser incluída na mesma lista, sofrendo graves prejuízos decorrentes dessa sanção", afirma a empresa.

Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro pronunciou-se a favor da decisão. "Sabe que nós estamos alinhados à política deles (dos Estados Unidos). Então fazemos o que tem que fazer", afirmou ao ser questionado sobre o caso.

Alinhamento com EUA

Em maio do ano passado, o governo de Trump abandonou unilateralmente o acordo nuclear fechado, em 2015, entre o país do Golfo Pérsico e outros cinco países (Reino Unido, França, China, Alemanha e Rússia), e voltou a impor sanções que haviam sido suspensas após a assinatura do acordo, atingem setores como o de transporte marítimo, o petrolífero e o financeiro.

As restrições buscam impedir empresas baseadas nos EUA a negociarem com pessoas ou entidades relacionadas na lista negra do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Ofac), do Departamento do Tesouro americano. Mas vai além, estendendo a restrição a empresas de outros países que tenham ligação com os EUA. As penas para descumprimento das sanções incluem desde o congelamento de bens nos EUA à inclusão na lista negra.

É este o argumento usado pela Petrobras para se recusar a fazer o abastecimento. Entretanto, as sanções não se estendem a alimentos, o que tem gerado contestações à estatal. A Eleva frisa estar tentando comprar combustível para concluir a exportação de milho, que, sendo alimento, não é sujeito a qualquer tipo de sanção.

Impasse ocorre em um contexto mundial de tensão acirrada entre o Irã e os EUA
Impasse ocorre em um contexto mundial de tensão acirrada entre o Irã e os EUA
Foto: AFP / BBC News Brasil

A estatal afirma que a ureia estaria sujeita a restrições dos EUA. Mas a Eleva alega que o produto veio de empresas que não estão na lista negra do país, e que a Petrobras viabilizou a importação do produto e não poderia ser penalizada por isso.

O caso gerou um processo judicial que chegou ao Supremo Tribunal Federal, acionado pela Petrobras depois de receber uma liminar obrigando-a a fazer o abastecimento. A estatal contou com parecer favorável da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, dizendo que a empresa não deveria ser obrigada a fazer o abastecimento devido ao risco de ser sujeita a represálias comerciais.

Dodge citou um argumento do Itamaraty segundo o qual o abastecimento por parte da estatal poderia prejudicar "relações diplomáticas estratégicas" do Brasil - que se referem ao interesse prioritário do governo nos EUA.

Escalada de tensão e perda de mercado

O impasse ocorre em um contexto mundial de tensão acirrada entre o Irã e os Estados Unidos, após episódios recentes como o abate, por forças iranianas, de um avião não tripulado (drone) americano no Estreito de Ormuz, uma das principais rotas de petroleiros ao Ocidente; e o envio de mil militares americanos à região em resposta ao "comportamento hostil" do Irã depois da explosão de dois petroleiros no Golfo de Omã.

Na semana passada, as tensões internacionais se agravaram com a captura de um petroleiro britânico pelo Irã no Estreito de Ormuz. O país persa afirmou que o barco foi capturado após uma colisão com um pesqueiro, mas o Reino Unido diz que a ação foi ilegal e vem exigindo a libertação do navio e da tripulação.

Nos últimos meses, os EUA impuseram uma série de novas sanções para buscar asfixiar a economia iraniana e pressionar o regime a recuar em seu programa nuclear.

Para analistas, o impasse com os navios iranianos indica que o país está assumindo um lado nesse jogo, o que pode representar uma quebra de confiança nas relações comerciais que foram intensificadas ao longo dos últimos 20 anos.

"Se o Brasil não abastecer os navios com base no receio da Petrobras, o Irã vai começar a diversificar as opções e a substituir o Brasil. O Brasil entra no rol dos países não confiáveis na perspectiva do país de assegurar a segurança alimentar", diz um ex-integrante do governo.

"O dano na relação comercial é muito grande. E recai sobre os produtores brasileiros. Estamos falando de geração de emprego, de renda, o prejuízo é grande", diz a fonte.

Para Kai Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, o impasse faz lembrar as discussões em torno do impacto da transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, medida que desagradaria os países árabes e impactaria fortemente a exportação brasileira de carnes halal - com os animais abatidos de acordo com os preceitos islâmicos - para o mundo árabe.

"O Brasil é depende fortemente da exportação de commodities e precisa desses mercados, mas decisões tomadas na política externa afetam as exportações do agronegócio brasileiro", diz Kenkel. "A ironia é que uma parcela dessa indústria tem uma bancada forte que apoiou o Bolsonaro, mas pode se tornar alvo de represálias a partir de sua política externa."

Aproximação no governo Lula

O Brasil aumentou a aproximação do Irã durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que abriu as portas do país para a compra de produtos brasileiros.

"O Brasil vendia menos de US$ 1 bilhão para o ano para o Irã antes de 2002. Ao longo do governo Lula, as exportações foram crescendo exponencialmente. Em seu segundo mandato, houve um momento em que 90% de todo o frango consumido em Teerã vinha do Brasil", lembra Flavio Rassekh, coordenador da ONG United4Iran no Brasil, que atua na defesa de direitos humanos.

Rassekh lembra que o país de 70 milhões de pessoas vive um período de racionamento de alimentos e dificuldades de abastecimento, resultado de uma conjunção de fatores: além das sanções, o país saiu recentemente da maior seca dos últimos 40 anos, passou por uma enchente destruidora no primeiro semestre e enfrenta uma crise de crise de hiperinflação.

Com todas essas dificuldades, diz Rassekh, o Brasil até agora era um parceiro importante, com ampla oferta de alimentos para atender as necessidades do país. "Com o governo de Bolsonaro, isso tudo pode ser revertido, e o Irã pode ficar ainda mais isolado no cenário internacional."

Assim, para o Irã, substituir as importações não é uma tarefa simples. O país tem poucos parceiros no cenário internacional e sofre com o impacto das sanções. O Brasil até agora se comportava como um país neutro sob o ponto de vista comercial.

"O Brasil sinaliza que está se aproximando da estratégia do governo Trump, que aprova e embarca em sua estratégia. O que é o contrário do que vinha fazendo no passado, investindo em relações multilaterais", diz Oliver Stuenkel, da FGV-SP.

Stuenkel aponta que um dos preceitos da globalização é que o comércio entre países não deve ser baseado em alinhamentos políticos, mas observa a tendência de potências como os Estados Unidos e a China de usar o comércio como arma política.

"É perigoso o Brasil se envolver nesse tipo de conduta", considera. "O comércio brasileiro tem como objetivo o desenvolvimento do país. É para gerar emprego, renda, e não para ser afirmar posicionamento político."

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