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A lição do general Venturini para Bolsonaro sobre o Itamaraty

Presidente devia conhecer como os militares selecionavam os representantes do País

19 ago 2019 - 12h23
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Caro leitor,

diante de um fato duvidoso, é normal ouvir entre civis a pergunta: "É legal? A lei proíbe?" Às vezes, a resposta é: "Não é ilegal, apesar de imoral". O que define as ações civis e as do Estado é a legalidade. Entre os militares, esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se é imoral, nada feito. Para provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do fraudulento Plano Cohen, em 1937, o então coronel Olímpio Mourão Filho não procurou um tribunal civil para se defender.

Pediu que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Queria mostrar que não faltara com a verdade e, portanto, não era indigno dos colegas. "Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares", escreveu o jornalista e cientista social Oliveiros Ferreira.

O presidente Bolsonaro está distante do Exército. Deixou a caserna em 1989. São 30 anos. Tornou-se assim o que o marechal Castelo Branco chamava de "anfíbio", um civil de origem militar, como foram os ex-governadores Ney Braga (Paraná) e Juracy Magalhães (Bahia). Foi essa característica que fez com que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada de Washington fosse compreendida e, em alguns casos, aceita por militares.

"É legal e acontece em outros países", disse um deles que escreveu para os colegas um texto com o título: Receita de general e receita de embaixador. Não é o único. O leitor viu aqui também que o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, apoia a indicação. Mas não são todos os militares que pensam assim. É o caso do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro.

Avesso a entrevistas, o general é pessoa cordial e de ideias claras. Ele as expôs no programa Roda Viva, da TV Cultura. E não mudou de opinião desde então: ele não nomearia um filho para o cargo. Santos Cruz acredita que a indicação não é só uma questão legal. Antes de tudo, é técnica e moral. Eduardo não teria o preparo que embaixadores de carreira têm. Nem mesmo a amizade com a família Trump importaria, pois a política externa americana não funciona em razão de amizades.

Nem os investimentos de suas empresas. Se assim fosse, Eduardo faria a Ford desistir de fechar sua fábrica em São Bernardo do Campo. Hoje, a sociedade americana está dividida. No próximo ano, o país pode escolher um presidente democrata. Como ficaria o Brasil com um embaixador que, como Eduardo, veste o boné de Trump? Juracy Magalhães disse "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Era embaixador em Washington.

Mas nunca assinou a carteirinha do Partido Republicano. E se Joe Biden for eleito presidente? Vamos ameaçar os americanos? Os Estados Unidos não são a Argentina. Quando Bolsonaro era apenas um capitão, o general Danilo Venturini era o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e assessorava o presidente João Figueiredo. Foi antes ministro-chefe da Casa Militar e testemunhara o nascimento da Lei de Anistia. Sabia da importância da pacificação para a reconciliação nacional, como contou em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estado.

Em 24 de outubro de 1990, depôs no Congresso. Diante dele, estava o senador Severo Gomes, que, em nome da abertura, trocara a Arena pelo MDB. Testemunha de um tempo em que o diálogo parecia possível na política, a conversa dos dois está no Diário do Congresso Nacional. Ela é pedagógica. Se tiver interesse, Bolsonaro encontra ali uma lição: como os militares escolhiam os embaixadores do País.

O general contava ao senador os rumos das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) quando fez uma revelação. Em 1982, o embaixador dos Estados Unidos lhe perguntou por que o Brasil tinha um representante mais competente do que o deles em Genebra. "Eu disse que os nossos embaixadores não são escolhidos aleatoriamente, mas em função da complexidade da missão que lhes cabe cumprir."

E sugeriu ao americano que mandasse outro diplomata à Genebra para auxiliar o colega em apuros. A diferença entre Bolsonaro e Venturini é que o presidente se apega ao que é legal. O leitor viu aqui Bolsonaro dizer: "Pretendo beneficiar meu filho, sim". Ele pode? É normal? Ele é o presidente e tem "a caneta".

Quem o contesta, é logo tachado de "melancia" e esquerdista. Trata-se, como disse Santos Cruz, de uma lógica binária, de extremos, porque os radicais que acompanham Bolsonaro têm sua própria guerra. Sua própria lógica. Seus próprios fatos. Com o passar do tempo, toda guerra provoca cansaço e indiferença.

O absurdo se mistura à paisagem e aos afazeres diários, como na poesia de Apollinaire, ele mesmo engajado na artilharia francesa de 1914. Em um verso de seus Calligrammes, o francês explicou a transformação de seu mundo: "Car on a poussé très loin durant cette guerre l'art de l'invisibilité". Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade.

Pouco a pouco, o horror da guerra parece normal. Invisível à nossa sensibilidade. É assim que a vertigem da sucessão de fatos e declarações do presidente da República faz o obus de sua artilha ter a cor da lua. E, dessa forma, atenuado, torna plausível não mais distinguir onde estão a legalidade, a moralidade e a honra.

Estadão
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