‘Recebemos só a merda dos ricos’: comunidade de palafitas no coração de Belém se sente excluída do ‘progresso’ da COP30

Moradores da Vila da Barca reclamam de obras que trouxeram mais problemas do que soluções à comunidade, além de falta de apoio

22 nov 2025 - 00h08
(atualizado às 07h07)
‘Recebemos só a merda dos ricos’: comunidade de palafitas no coração de Belém se sente excluída do ‘progresso’ da COP30
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A 'merda' dos ricos. É o que moradores da Vila da Barca, comunidade de palafitas no coração de Belém, dizem ter recebido como saldo da COP30. Se nas últimas semanas os olhos do mundo acompanharam atentamente as negociações sobre o futuro do planeta na Zona Azul, a cerca de 20 minutos de distância da área restrita da Conferência, esses moradores lidam há meses com uma obra que fará o esgoto de um bairro nobre passar ao lado de suas casas. Sem contar os entulhos e a falta de apoio.

Dois terrenos dão as ‘boas-vindas’ em uma das entradas da Vila da Barca, que fica no bairro Telégrafo, bem ao lado de parte das unidades habitacionais entregues pelo Governo Federal no início dos anos 2000 e do caminho para um dos trechos com palafitas. Um dos terrenos antes era usado como um campinho de futebol, onde crianças brincavam e empinavam pipa. Até que ele, de propriedade privada, passou a ser usado como uma espécie de bota-fora de obras pré-COP, com entulhos e lixos. A comunidade conseguiu que fosse retirada a maior parte do material, mas o espaço continua marcado por muita lama e água parada. 

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Foto: Beatriz Araujo/Terra

Do outro lado, o problema, como encarado pelos moradores, segue. Continuam a todo vapor as obras para uma “estação elevatória”, que é um trecho por onde passará o esgoto da Doca, área ‘cartão postal’ de Belém, que recebe um novo projeto de saneamento. Antes, tudo era sinalizado com placas que indicavam com clareza que se tratava de uma ação do governo do Pará em preparação à COP30. Isso enquanto a própria comunidade é marcada historicamente por falta de acesso a saneamento básico. Com as reclamações, viraram as placas para o lado de dentro.

“Nosso movimento, de lideranças e ativistas da comunidade, acreditava que a COP30 seria um momento de  trazer benefícios para a comunidade, de conquistas para melhoria do clima. Mas aí, infelizmente, pra gente, na questão governamental, veio essa situação, né? O governo trouxe isso pra gente: literalmente a merda, como a gente fala aqui. E é muito triste isso, porque uma comunidade que tem tantos problemas, e veio mais um”, conta Pawer Martins, ativista da comunidade. 

Foto: Beatriz Araujo/Portal Terra

“É mais um caso que a gente chama de racismo ambiental agora, né? Esse nome que está muito em evidência, mas isso sempre aconteceu na vila” – Pawer Martins

Por mais que reconheçam a importância de uma Conferência das Partes, bem como da aproximação de movimentos sociais de diversas partes do mundo e do fortalecimento de parcerias de resistência, a comunidade sente não ter recebido nada de bom, concretamente, com a COP30. 

Se com a Conferência acontecendo do lado de casa eles já se vem esquecidos, não sabem como será a vida após o encontro internacional. “O pós-COP vai ser muito complicado. E eu até digo aqui: quando a gente precisar de um SOS, quem está nos ouvindo, que ajude a gente, né? Vão precisar estar nessa luta e fortalecer essa comunidade centenária aqui nessa luta. E espero que o governo venha dialogar. Porque nós não somos, como posso dizer, um problema pro governo. Pelo contrário. Queremos chegar em uma situação boa pra todo mundo”, complementa Pawer. 

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Foto: Beatriz Araujo/Portal Terra

Ao Terra, o governo do Pará informou que a obra não representa qualquer risco sanitário ou ambiental à comunidade: “A obra em execução no bairro do Telégrafo, em Belém, integra o sistema de esgotamento sanitário da Sub-Bacia 4.1.1 do Una e foi projetada para viabilizar a coleta, o transporte e o tratamento adequado dos efluentes em áreas com limitações topográficas. Trata-se de uma estação elevatória necessária para bombear o esgoto de regiões mais baixas até a Estação de Tratamento do Una. A elevatória não produz efluente, não trata e não lança esgoto — apenas o transporta para o destino final adequado. A obra deve ser finalizada até o final de dezembro”.

A escolha da instalação, segundo o Estado, se deu “exclusivamente por critérios técnicos de engenharia sanitária, hidráulica e geografia urbana”. A instalação segue “rigorosamente as normas técnicas e ambientais vigentes, incluindo as diretrizes do Conama, e não representa qualquer risco sanitário ou ambiental à comunidade local”, pontuou a nota. 

“Essa é uma obra de infraestrutura de necessidade básica, que não causa riscos e nem prejuízos para o local. A estação elevatória é uma obra de pequeno porte, construída com tecnologia que não produz barulho e nem mau cheiro, ou seja, não trará quaisquer transtornos para os moradores”, complementou o texto. 

Por mais que o governo estadual tenha dito que duas reuniões com moradores foram realizadas em abril deste ano, os moradores continuam em busca de esclarecimentos, estudos de impacto ambiental e mais informações sobre como tudo isso pode interferir na comunidade. 

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Representantes da Vila da Barca informam ter acionado o Ministério Público Federal devido à questão e aguardam retorno. A reportagem acionou o MPF em busca de mais detalhes sobre o andar do caso e aguarda retorno. O espaço será atualizado em caso de resposta. 

Foto: Beatriz Araujo/Portal Terra

Uma casa tombada, um colchão e uma cesta básica

No meio disso tudo, em paralelo à agenda oficial da COP30, uma casa tombou no complexo de palafitas. Esse foi o assunto da semana entre os moradores. Sem estrutura adequada, a casa caiu devido à força da maré e comprometeu residências ao redor. Cinco famílias tiveram que deixar suas casas, que acabaram entortando com o impacto. No lar, onde não foi possível salvar nada, morava Marcio de Moraes, de 47 anos, sua companheira, a sogra e um filho de 6 anos. O que receberam da Defesa Civil foi um colchão de solteiro, uma cesta básica e seis meses de aluguel social, com o valor de R$ 500 por mês. 

“Eu tenho que dar o meu jeito, amigos estão me ajudando aqui, pra ver se eu ergo a minha casa, porque eu não tenho como fazer isso. O que eu mais tinha de precioso era a minha casa, e hoje em dia eu não tenho a minha casa”, contou Márcio, sentado em frente aos destroços. Enquanto conversava com o Terra, ele e amigos tentavam resgatar parte das madeiras, para tentarem reconstruir a casa. De que forma, ainda não sabem.

Foto: Beatriz Araujo/Portal Terra

O sentimento de Marcio é de abandono. No momento desempregado, com o sustento da casa vindo do trabalho de sua companheira, sente falta mesmo de palavras de conforto. “A gente vê no jornal tantas coisas acontecendo. Eles dançando, curtindo, pra lá e pra cá [durante a COP30]. E nós aqui, na situação que estamos. Ninguém vem aqui dar um apoio pra gente. Eles não estão nem aí. Eles não querem saber. Eles querem saber deles. Mas nós que estamos aqui. Lá na cidade, lá no centro de Belém, lá, está uma maravilha. Mas aqui, na periferia, olha como está”, desabafa.

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Aniele dos Santos, de 35 anos, foi uma das que tiveram a casa interditada após o tombamento. Sem ter para onde ir, com quatro filhos, ela está dormindo temporariamente na casa onde acontece a Barca Literária, um projeto social na comunidade de palafitas. A certeza que tem é apenas de que, lá, um morador ajuda o outro. E ela, que mora há 15 anos na Vila, acredita que a Defesa Civil apenas agiu com agilidade na situação devido ao contexto da COP30 na cidade.

“Porque é uma vergonha, né? Dos investimentos que chegaram para a COP30, só foi o esgoto que jogaram pra cá. Fizeram tudo bonito, lá para a Doca. E jogaram só a merda do pessoal de lá, dos ricos, pra gente. Não vi mudança nenhuma aqui. Mas bora ver depois, né, como que vai ser, se vamos ser abandonados”, comenta Aniele.

A reportagem acionou a prefeitura de Belém em busca de mais esclarecimentos e posicionamento sobre o ocorrido, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.

Foto: Beatriz Araujo/Portal Terra

Reivindicação histórica

A pressão foi grande. E, em meio aos relatos de racismo ambiental em torno das obras de melhoramento para a COP30 em Belém, o governo do Pará anunciou o início de obras de saneamento na Vila da Barca. Segundo lideranças comunitárias, lá moram cerca de 300 famílias. Mas, para a comunidade, o trabalho não está sendo feito da forma esperada.

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Em julho, conforme anunciado pela própria Agência Pará, o governador Helder Barbalho prometeu que toda a comunidade contaria com abastecimento de água e esgotamento sanitário até abril de 2026. Isso por meio da privatização do serviço de água e esgoto em acordo fechado com a empresa Águas do Pará. 

“Os serviços de saneamento beneficiarão cerca de 5 mil moradores da comunidade. O projeto combina engenharia adaptável às características das moradias sobre palafitas e à dinâmica das águas, contando com forte atuação comunitária, por meio de diálogo e programas de capacitação e educação ambiental”, informou a empresa ao Terra.

Ainda segundo eles, em apenas três meses foram instalados mais de 2 quilômetros de redes de água elevadas, solução adaptada aos períodos de alagamento e que evita o contato com águas contaminadas. “Está em andamento a segunda fase do projeto, de implantação do sistema de esgotamento sanitário, que inclui a instalação de mais de 2 quilômetros de redes coletoras, garantindo que 100% do esgoto coletado seja tratado, contribuindo para a melhoria das condições sanitárias e proteção do meio ambiente”.

Foto: Beatriz Araujo/Portal Terra

“A ação na Vila da Barca faz parte do maior investimento em saneamento da história da Amazônia Legal: ao longo da concessão de 40 anos, a Águas do Pará vai investir quase R$ 19 bilhões para atendimento a 126 municípios, beneficiando mais de 5 milhões de paraenses. A Tarifa Social - na qual foram inseridos os moradores da Vila da Barca - será implementada em todo o estado. A expectativa é beneficiar 1,6 milhão de paraenses de baixa renda”, complementam em nota.

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Pawer, liderança da Vila da Barca, explica que por mais que essa seja uma reivindicação de mais de 80 anos, estão colocando o sistema de esgoto sem fazer uma “obra completa” na comunidade e que isso é um problema -- pois parte das palafitas se encontram em situação precária. A comunidade aponta que diversas passarelas estão sendo danificadas e ficando moles devido às obras. "A gente já vem falando isso. Vão esperar desabar”, disse ao Terra.

A Águas do Pará informou que a recuperação das passarelas da Vila da Barca será realizada de forma gradativa, conforme o avanço das obras de implantação do sistema de esgotamento sanitário no local. "Durante a implantação do sistema de abastecimento de água, a empresa realizou a recuperação das passarelas na área da obra, reforçando seu compromisso com os moradores da comunidade."

Foto: Reprodução

*A repórter Beatriz Araujo viajou a Belém com apoio do ClimaInfo

Fonte: Portal Terra
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