Maria Ivaneide, de 64 anos, nasceu e segue até hoje na Ilha do Combu, em Belém, capital do Pará, que recebe a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) nesta segunda-feira, 10. Quando era criança, ela e sua família pegavam a água do rio e bebiam. Nunca deu problema, frisa. Mas agora tudo mudou, a ilha não é a mesma. Com o aumento da população da comunidade ribeirinha, da intensificação de um turismo que se tornou predatório e da poluição na região, não dá mais pra consumir dessa água.
- Essa reportagem integra a série Pará além de Belém, que conta histórias e curiosidades de municípios do Estado, que vira o cento do mundo em meio a COP30, a ser realizada de 11 a 21 de novembro. Conheça a cidade das Bicicletas, a cidade com 40 cabeças de gado por pessoa, a cidade do WhatsApp e comunidade ribeirinha sem água potável.
Sem apoio da prefeitura ao longo dos anos, ela conta que os moradores precisam se organizar para sempre terem água potável em casa --comprando em um poço há 20 minutos de barco, ou buscando água mineral na cidade. Sem essa segurança hídrica, os perrengues são muitos.
Na sua casa são cinco pessoas. Por semana costumam consumir em torno de 100 litros de água. Ela faz assim: compra uma vez por semana três galões de 20 litros de água do poço e os utiliza para cozinhar. Para ter mais segurança, sempre mistura a água com hipoclorito. Da água mineral, que é mais cara, compra ao menos dois galões do tipo por semana.
Os valores variam. Com relação à água do poço, se a pessoa for buscar de barco fica R$ 4 a “botija”, como nomeia, de 20 litros. Mas também há um homem que passa semanalmente nos igarapés --pequenos cursos d’água da Amazônia que são os caminhos que interligam a comunidade-- vendendo os recipientes com água. Ele faz uma rota pelas casas em dias específicos, e, se comprar diretamente com ele, o preço fica em R$ 5. O vendedor também comercializa água mineral a R$ 12 os 20 litros. Se não for por esse caminho, os moradores precisam buscar água mineral em Belém.
O vendedor passa nas casas dois dias por semana. Porém, imprevistos acontecem e, às vezes, ele acaba não passando e não avisa. Se calhar com um dia em que a família precisava reabastecer o estoque de água e estava contando com ele, é perrengue.
“Acontece muito perrengue de acabar a água e não ter como buscar mais. Aí tem que dar um jeito, porque água é água, né. Às vezes a gente é capaz de morrer por causa da água, né. Eu já bebi do rio em hora de sede. Não por muitos dias, nem por muitas horas. Mas já enchi uma jarra, coloquei a água para esquentar, pinguei algumas gotinhas de hipoclorito e tomei”, conta Maria.
E tudo isso já faz parte de uma versão 'light' da história. Agora as lanchas e barcos têm motores potentes e o trajeto é rápico. Mas, antes, ou era a remo ou a barcos 'po-po-po' (com um motor simples, onde é puxada uma cordinha, e a embarcação faz um barulho similar à forma que se lê no apelido que recebeu). Nessa época o trajeto de 20 minutos demorava 1h30.
E a água para os demais usos domésticos? A casa de Maria, assim como de boa parte dos moradores da ilha, contam com uma caixa d’água que bombeia a água diretamente do rio. Essa é a água que usam para lavar louça, lavar roupa, o banheiro e demais afazeres do tipo. Mas no igarapé Piriquitaquara, assim como nos demais, a água é amarronzada. E, para deixá-la mais cristalina, os moradores contam fazer um tratamento caseiro com hipoclorito e também sulfato de alumínio, que é outro composto químico utilizado para remover impurezas da água e clareá-la. Tudo que envolve água, por lá, é trabalhoso.
Falta de apoio
A sensação é de que a comunidade é esquecida pela prefeitura. “Não temos apoio. Nunca aconteceu, assim, de trazerem galões de água pra gente... Tudo a gente compra. Coisa assim, de alguém doar galões pra gente, nunca tivemos”, conta Maria.
O que tem mudado a realidade da comunidade de forma mais efetiva, mesmo que a passos lentos, são projetos sociais de organizações e empresas que propõem melhoria aos moradores em infraestrutura e, até mesmo, com formações em diversas frentes.
Um desses projetos tem gerado grandes expectativas em Maria, assim como outros moradores da comunidade com quem a reportagem conversou. É uma obra que pode, enfim, melhorar a relação de parte dos ribeirinhos com o consumo de água.
Neste caso, é uma iniciativa que faz parte do Programa Regulariza, do governo do Pará, que atua em parceria com a prefeitura de Belém, empresas e o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio). Segundo o governo, estão sendo instaladas dez cisternas na ilha, em um sistema de captação de água da chuva --sendo parte em pontos públicos como escolas.
A previsão inicial era de que todos fossem entregues até a segunda metade de outubro. A mais próxima de Maria é a que está sendo construída nos fundos da Associação das Mulheres Extrativistas do Combú (AME), que fica próximo à sua casa, e ainda não foi entregue --ao menos até este domingo, 9.
Como contaram moradores que acompanham os trabalhos de perto, a obra na AME foi intensificada nas últimas em meio à movimentação da COP30 e a expectativa é que o ponto seja entregue durante os dias do evento.
A vida em meio ao turismo Ilha Combu
A energia elétrica chegou à Ilha do Combu em 2011. Antes não tinham geladeiras e era preciso abastecer caixas térmicas com gelo semanalmente para preservar os alimentos e conseguir tomar uma água geladinha em meio ao calor de Belém. Quem tinha um freezer, precisava arcar com os altos custos de um gerador --que costumava permanecer ligado apenas durante a madrugada. Já a iluminação das casas, feitas de madeira, era à base de lamparinas. Esses são apenas dois exemplos, mas refletir sobre seus impactos no dia a dia já mostra como tudo era diferente.
A luta foi grande para conquistarem a rede de energia elétrica. Moradores contam que precisavam ir a longas reuniões com autoridades e empresas, que às vezes duravam dias inteiros, e até ficavam sem comer durante o dia para não deixarem o posto. Insistiam, mas não acreditavam que um dia, realmente, iriam apertar um botão e ter luz. Até que tudo deu certo, e a festa foi grande. Agora, contam que se acontece atualmente de ficarem alguns momentos sem energia por algum motivo, a agonia vem e nem se recordam de como viveram tantos anos sem luz.
A festa, porém, não veio acompanhada apenas de alegrias. Ao mesmo tempo em que esse passo foi muito importante para o desenvolvimento e bem-estar da comunidade ribeirinha da Ilha do Combu, também foi um marco de transformação no turismo local, relatam moradores.
A Ilha do Combu é uma Área de Proteção Ambiental (APA) e por ser um “paraíso” da Amazônia próximo à Belém tem alguns restaurantes tradicionais que recebem turistas há anos. Mas o que dava para se contar no dedo, saiu do controle. Mesmo que sem água potável, com a procura de turistas, começaram a ser criados dezenas de restaurantes pelas margens da ilha. Moradores que vivem lá a vida toda dizem não ter mais noção nem da média de quantos empreendimentos existem.
Para chegar na Ilha de Combu é preciso pegar uma lancha em Belém a partir do Terminal Hidroviário Ruy Barata, na Praça Princesa Isabel. A viagem ida e volta custa R$ 24, valor que pode ser paga em dinheiro, débito ou pix. Neste domingo, 9, pré-COP30, a travessia estava movimentada de brasileiros e gringos, e havia diversas pessoas na entrada do local entregando panfletos de propagandas que sugeriam restaurantes aos visitantes.
Os restaurantes querem captar os clientes desde o início porque são muitas as opções. E a pessoa precisa dizer, já ao embarcar na lancha, para qual ponto específico ela quer ir --e lá ela será deixada pelo barco. As propostas dos locais tem ficado cada vez mais mirabolantes para atrair os clientes, indo de shows a estruturas em estilo de resort com piscinas --mesmo que os estabelecimentos fiquem, literalmente, no rio.
A maior parte dos restaurantes tem uma espécie de atracadouro próprio que recebe lanchas de hora em hora. E, conforme contaram moradores, o fluxo é alto todo fim de semana, não só durante a COP.
A busca por uma fatia desse público tem feito pessoas desmatarem áreas e construírem empreendimentos irregulares pela ilha, denunciam os ribeirinhos. Além disso, não são todos os estabelecimentos que se preocupam com os resíduos e os impactos ambientais gerados pelo turismo intenso.
Antes, além da força do açai e do cacau, os ribeirinhos da Ilha do Combu se alimentavam do peixe e camarões que pescavam, o que tem ficado mais difícil a cada ano. Os animais estão aparecendo em cada vez menos quantidade. No ano passado, por exemplo, moradores contam que o camarão “sumiu” do rio. Não sabem se pela poluição, se por os peixes se incomodarem com a agitação das águas devido ao fluxo intenso de lanchas e jet skis, ou se pela crise climática, em si. Ou, até mesmo, se pela junção dos fatores. O que sabem é que sentem o impacto disso.
A segurança também não é mais a mesma. Moradores relatam que os roubos aumentaram na região --como os de lanchas inteiras, com motores que custam o preço de carros populares. Essa insegurança tem restringido o livre circular dos ribeirinhos, que agora precisam ponderar algumas ações que antes eram tomadas com total liberdade.
O Terra acionou Belém e o governo do Pará em busca de informações sobre quantos estabelecimentos estão ativos na Ilha do Combu, em funcionamento em meio às moradias ribeirinhas, e sobre casos de desmatamento, infrações ambientais e outros crimes atrelados à expansão do turismo na região. A reportagem também questionou sobre a realidade hídrica da comunidade, e o atraso da entrega da cisterna. O espaço segue aberto e será atualizado em caso de retorno.
Em outubro a Prefeitura de Belém deu início a um “ciclo de fiscalização e orientação em restaurantes da Ilha do Combu” justamente com foco no combate ao descarte irregular de resíduos e de esgoto nos rios. A ideia é que as fiscalizações sejam mantidas em frequência mensal a fim de proteger os recursos hídricos e a biodiversidade da ilha.
“Nos três restaurantes visitados inicialmente, a equipe de fiscalização encontrou irregularidades, como a falta de tratamento adequado de água e esgoto, com ausência de fossas apropriadas e até o descarte direto de água de piscina com cloro nos rios”, escreveu a prefeitura em nota publicada em outubro, informando ter intimado os estabelecimentos a prestarem esclarecimentos.
*A repórter Beatriz Araujo viajou a Belém com apoio do ClimaInfo.