No Pará, moradores da 'cidade do WhatsApp' enfrentam falta de água e de saneamento básico
Com cerca de 15 mil habitantes, Trairão (PA) vive conectado por grupos de mensagens e enfrenta problemas de infraestrutura e abastecimento
Moradores de Trairão (PA) enfrentam grave escassez de água, falta de saneamento básico e problemas ambientais, enquanto usam grupos de WhatsApp como principal meio de comunicação para suprir a ausência de veículos tradicionais.
No município de Trairão, no Pará, às margens da BR-163 e a mais de 1,2 mil quilômetros de Belém, a população vive uma rotina marcada pela falta de água, ausência de saneamento básico e também pela carência de meios de comunicação tradicionais. Sem rádio, TV, jornal ou portal local, as notícias circulam de um jeito diferente: é pelo WhatsApp que os cerca de 15 mil moradores se informam, trocam alertas sobre o cotidiano e comentam as decisões políticas da cidade.
- Essa reportagem integra a série Pará além de Belém, que conta histórias e curiosidades de municípios do Estado, que vira o cento do mundo em meio a COP30, a ser realizada de 11 a 21 de novembro. Conheça a cidade das Bicicletas, a cidade com 40 cabeças de gado por pessoa, a cidade do WhatsApp e comunidade ribeirinha sem água potável.
Em diferentes grupos, centenas de mensagens diárias tratam de tudo --de acidentes de trânsito a reclamações sobre o abastecimento de água.
Batizado por causa das grandes traíras que habitavam seus rios, Trairão nasceu e se expandiu às margens da BR-163, estrada construída nos anos 1970, durante a ditadura militar. A pavimentação, concluída em etapas por diferentes gestões, impulsionou o crescimento econômico da região e também o avanço do desmatamento, das queimadas e do agronegócio.
História e desenvolvimento
O processo de ocupação começou em 1972 com a abertura do Ramal Sul da BR-163. Dois anos depois, os primeiros colonos reivindicaram ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) uma área para instalar escola, igreja, posto de saúde e um espaço de comercialização de produtos agrícolas. Mesmo sem autorização formal, em 1975, a comunidade construiu a primeira escola e demarcou os primeiros lotes urbanos, dando origem à Vila de Trairão.
Nos anos seguintes, a migração se intensificou, principalmente de nordestinos atraídos pelas terras férteis. Vieram também colonos do Sul e Sudeste, o que impulsionou o cultivo de cacau, banana, feijão, mandioca e arroz, além da expansão da pecuária e das serrarias. O garimpo, mais tarde, movimentou o comércio local, mas também trouxe aumento da degradação ambiental.
O nome da cidade nasceu de uma história curiosa. Na época, os moradores costumavam ir até o rio Amadeu pescar traíra (peixe de água doce) e, um certo dia, pegaram uma de 40 kg. Começaram a se referir ao rio como Trairão. Quando houve necessidade de registrar a comunidade em cartório, foi consultada a população sobre o nome, e foi escolhido Trairão.
A cidade do WhatsApp
Sem meios de comunicação tradicionais, os grupos de WhatsApp são o principal canal de notícias da população.
“A gente segue muito grupos de WhatsApp, que sempre têm informações de um portal de notícias de Itaituba [cidade localizada a mais de 80 km de Trairão]. Lá sempre aparecem algumas notícias das cidades vizinhas. Quando queremos saber alguma informação específica, também acompanhamos um jornal de lá. Aqui temos um rapaz que é representante do jornal de Itaituba na nossa cidade”, relatou ao Terra um morador.
O Terra entrou em dois desses grupos, com cerca de 900 integrantes em um e 540 em outro. Os moradores compartilham links de reportagens de todo o Brasil, mas também fazem anúncios de venda e prestação de serviços. Qualquer pessoa pode publicar, e esses grupos acabam funcionando como “jornais comunitários”, inclusive em períodos eleitorais. Alguns vídeos com uso de inteligência artificial também circulam por lá. Em um deles, uma moradora chegou a comentar: “Eu ia acreditar.”
“Aqui é uma cidade muito próspera, mas muitas pessoas vão para as cidades vizinhas. Tentamos trazer as coisas para cá, mas nem sempre é valorizado”, disse o morador à reportagem.
Falta de água e de saneamento básico
Apesar do clima amistoso e da vida pacata, Trairão enfrenta graves problemas de infraestrutura. “Na clínica em que eu trabalho fazem dois meses que não temos água. Não podemos usar o banheiro. Para lavar o material, preciso pegar água em galões e trazer. Lá em casa, por exemplo, o poço secou e temos que pegar água com o pessoal da rua. A água vem cheia de terra e tomamos banho com lama”, relatou a entrevistada.
Segundo ele, algumas casas têm poços artesianos, mas muitos moradores têm receio de consumir a água e optam por comprar galões semanalmente para beber e cozinhar. “Lá em casa minhas roupas são todas amarelas. Eu não sei o que é lavar roupa e ela ficar branca.”
Ele explica que a situação piora durante o período de seca: “A gente está na época da seca, então a água fica barrenta. Quando é época de chuva, fica mais tranquilo, mais limpinha. Não há tratamento de água, a água que vai pro poço é a mesma que a população usa normalmente. Eu evito ao máximo usar roupa branca pra não correr o risco de ficar amarelada. Mas o pessoal já acostumou".
No bairro Industrial, moradores reforçam as dificuldades de viver nessa situação. Em um grupo de WhatsApp da região, dezenas de fotos mostravam pias cheias de louça e caixas d’água vazias, além de relatos de pessoas de que não podiam nem tomar banho.
No dia 6 de novembro, uma morador publicou um vídeo no TikTok, chorando por não ter água. “Sabe aquele dia que você chora por não ter água pra fazer as coisas dentro de casa? Essa sou eu hoje”, disse. “Estou com banheiro sujo, louça suja, roupa suja. Não lembro nem quando foi que lavei lençol ou toalha, porque não tem como lavar”. No vídeo, ela mostrou a caixa d’água completamente vazia e desabafou: “Vai água pra uns e pra outros não.”
O vídeo repercutiu no município e, um dia depois, a morador atualizou dizendo que o problema havia sido resolvido com o apoio de um vereador e representantes da prefeitura.
@josiane.batista11 Hoje eu chorei 😭
♬ som original - Josi batista
O Terra procurou vereadores do município, mas nenhum se dispôs a conceder entrevista. A reportagem também tentou contato telefônico com o prefeito, mas não obteve resposta até a publicação.
Em nota, o Governo de Pará informou que a "Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) não atua no município de Trairão. A Cosanpa acrescenta que, para alcançar a universalização do serviço de fornecimento de água e do esgotamento sanitário, o Governo do Pará estruturou um novo modelo de gestão, com concessão dividida em quatro blocos e investimentos que ultrapassam R$ 20 bilhões, beneficiando 5,3 milhões de pessoas em todo o Estado."
Saúde e cotidiano
De acordo com o morador ouvido pelo Terra, Trairão conta com postos de saúde e um hospital, além de outra unidade hospitalar em construção. “Ainda não foi inaugurado”, contou. “A saúde é mediana. Há coisas que procuramos nas cidades vizinhas, mas aqui é feito parto, por exemplo. Quando é algo mais grave, normalmente é preciso ir pra fora. Mas nessa nova gestão teve bastante diferença, melhorou bastante coisa.”
Ele afirma que, por ser uma cidade pequena, a insegurança é baixa. “Todo mundo conhece todo mundo.” Grande parte dos moradores, segundo ele, têm fazendas de gado, madeireiras, pequenos comércios ou são garimpeiros.
Região sob pressão ambiental
Trairão está em uma área considerada de alta sensibilidade socioambiental, especialmente diante da crise climática global. Dentro de seus limites estão quatro Florestas Nacionais (Trairão, Itaituba I, Itaituba II e Altamira), além da Área de Preservação do Tapajós, do Parque Nacional do Jamanxim e da Terra Indígena Sawré Muybu.
Esses territórios somam cerca de 4,6 milhões de hectares e sofrem constante pressão e invasão. Apesar disso, não há, no município, representação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal.
Ainda assim, em 2023, a Polícia Federal deflagrou a Operação Petulância na cidade de Trairão, cumprindo dois mandados de busca e apreensão contra um casal suspeito de comandar o desmatamento e a venda ilegal de madeira na região. Durante a ação, foram encontradas uma pistola, um rifle e 55 munições, o que levou à prisão em flagrante da mulher.
Três caminhões e quatro tratores utilizados nos crimes foram apreendidos, além de uma caminhonete e uma grande quantidade de documentos que relacionariam os investigados à atividade ilegal. O casal era investigado por diversos crimes ambientais e suspeito de ter furtado uma carga de madeira apreendida pelo Ibama em 2018.