Lavando roupa na pia, com um sabonete pelo qual teve que brigar para conseguir, em um banheiro com o chão sujo, privadas entupidas e cheiro nauseante, uma mulher indígena de cerca de 30 anos conta que não aguenta mais estar na Aldeia COP, espaço que ocupa cerca de 3,5 mil indígenas durante a COP30 em Belém. A realidade do local, na prática, vai além das unidades de quartos climatizados, monitorados e até com chave de segurança que foram anunciados.
Receba as principais notícias direto no WhatsApp! Inscreva-se no canal do Terra
Cerca de 10 indígenas deram seus relatos ao Terra sobre como está sendo ficar alojado na Aldeia COP, que fica na Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará. A reportagem também teve acesso ao local.
Ao chegar na Aldeia COP há duas entradas. À direita é o caminho aberto ao público, onde é possível fazer um credenciamento para acessar o espaço com cerca de 150 expositores indígenas que vendem de biojoias e artesanatos, palcos e estruturas onde se movimenta uma programação paralela às das zonas Azul e Verde da COP30. Também é lá onde parte dos indígenas estão dormindo, em salas com ar-condicionado dispostas em três andares. Desse lado não há reclamações de falta de água, calor e cheiro de esgoto.
Mas a maior parte está do outro lado da Aldeia, que fica à esquerda da entrada principal. Há seguranças que acompanham o acesso, mas sem um controle rígido sobre quem entra e quem sai, conforme presenciado pela reportagem durante visita. A primeira impressão ao pisar lá é de que está tudo bem. A Escola é arborizada, há diversos espaços para convivências montados e trabalhadores circulando. Mas só quem está alojado ao longo dos dias da COP30 sabe como está a real situação.
A principal reclamação é sobre o abastecimento de água. Todos os indígenas com quem a reportagem conversou e que estão desse lado da Aldeia relataram faltas de abastecimento cotidianas de água -- tanto para beber, quanto para uso de higiene pessoal. O que tem ocorrido, como explicam, é que chega uma hora que a água acaba e demora cerca de três horas para que seja reabastecida.
Na correria, o que acabam fazendo é comprar água por conta própria para beber. Já para tomar banho, precisam esperar ou buscarem outros banheiros pela universidade ou arredores onde possam utilizar.
"Chegamos no banheiro e não tem água, privada cheia de bosta. Deus me livre", contou um. Isso além das filas para conseguir tomar banho quando há água -- e já esperadas considerando a quantidade de gente no lugar.
Adentrando nesse lado da Aldeia COP, é possível ver barracas de acampamento montadas em corredores e diversos varais improvisados onde estendem as roupas que lavam em meio ao clima de calorão de Belém. Até que chega a parte das duas quadras, onde há beliches amontoados.
Um dos indígenas dormiu apenas uma noite no ginásio e não aguentou. Se juntou com um grupo e dividiram o aluguel de uma estadia para 10 dias da Conferência --o que paga do próprio bolso. Lá ele diz ter mais condições de infraestrutura.
Os beliches são muitos, e não sobra quase espaço para que os grupos guardem todos seus objetos pessoais. Uma coisa vai engolindo a outra, e lota as quadras. Há climatizadores nas laterais do ginásio voltados para as camas, mas acabam não vencendo e o clima segue quente para quem está dormindo mais ao meio. A falta de privacidade é outro ponto, tanto que diversos beliches estão "cobertos" com mantas, que tentam fazer a vez de paredes. Segundo o governo federal, foi entregue um kit de enxoval com lençol, fronha, manta e travesseiro para cada um.
A alimentação tem ocorrido três vezes por dia, em um refeitório que foi reformado na área de convivência. Há quem consiga comer bem e se agrade. Mas também há quem relate ainda não ter experimentado os alimentos por 'chegar tarde' e a comida ter acabado. A variedade dos alimentos também foi criticada. Para driblar, alguns tem acendido fogueiras e feito suas próprias carnes, e outros acabam tendo que contar com delivery. Em paralelo, diversos sacos de laranjas ficam distribuídos pela Aldeia.
É unânime entre eles a importância de estarem na COP, mostrando suas múltiplas vivências e denunciando como eles têm sido afetados com avanços da agropecuária, desmatamento, garimpo e pela crise climática como um todo. Que são eles quem guardam e cuidam das florestas, dos biomas. Mas também reconhecem a falta de estrutura para recebê-los e as desigualdades na própria COP -- como ao questionarem à reportagem, nas conversas, onde a ministra dos Povos Indígenas e sua equipe estão dormindo.
Outro lado
O Terra acionou a COP30 em busca de posicionamentos sobre as questões levantadas, assim como solicitando informações adicionais sobre o funcionamento da Aldeia COP e como foi feita a repartição de quem dormiria onde, mas pediram para que o assunto fosse encaminhado para o ministério dos Povos Indígenas (MPI). E a assessoria do ministério se manifestou.
Segundo o MPI, a divisão de quem ficaria nas quadras, e quem ficaria nas salas, foi feita "com base nos tamanhos das delegações e para que elas ficassem reunidas nos mesmos espaços, privilegiando assim a organização própria dos grupos de indígenas recebidos". Ao todo foram disponibilizadas duas quadras, um ginásio e 46 salas com ar-condicionado.
Na conta da falta de água, em nota, explicaram que o abastecimento nos prédios da Escola de Aplicação da UFPA possui capacidade para 40 mil e 31,5 mil litros, respectivamente. E que uma caixa d’água adicional com 30 mil litros foi adicionada, assim como um sistema auxiliar de 30 mil para os dois reservatórios foi instalado. Mas que, mesmo assim, os serviços de água no período noturno estão sendo impactados devido a um racionamento na cidade e Belém a partir de 23 horas. "Apesar do recebimento de caminhões pipa e reforços com sistema auxiliar, as caixas d’água demoram para atingirem o nível de abastecimento com extrema agilidade", esclareceram.
Com relação à zeladoria e segurança, o Ministério disse que uma empresa foi contratada para atuar na área de credenciamento e dependências, que a segurança local da Escola de Aplicação foi mantida e que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) disponibilizou seguranças indígenas para patrulhar o local.
Sobre as refeições, afirmaram que foram proporcionadas pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) por meio da Campanha Nacional de Abastecimento (CONAB), que doou 1.200 cestas de alimento para a Aldeia COP. "Por dia, três refeições são oferecidas com acompanhamento de uma nutricionista e preparo pela equipe de cozinha. São preparados diariamente grãos, carboidrato e proteína, assim como frutas e legumes", explicaram.
Em manifestação às reclamações recebidas pelo Terra, o Ministério respondeu que: "equipes de limpeza fazem rondas e rodízio de limpeza das dependências várias vezes ao dia. Não seria possível haver falta de comida para todos porque ainda há alimentação disponível. Sobre calor nos quartos, todos eles contam com aparelhos de ar-condicionado e 22 deles foram adquiridos para substituir as unidades em mal funcionamento."
Presença indígena
É a COP com maior participação indígena da história das COPs, segundo Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, com relação à Conferência que segue até sexta-feira, dia 21.
A Aldeia COP foi aberta oficialmente na última terça-feira, dia 11, um dia após o inicio oficial da Conferência. De lá pra cá, ao todo, 3,5 mil indígenas foram recebidos na Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará. Entre eles, 385 povos foram representados, sendo 312 do Brasil e 73 de 42 países. O espaço possui uma área total de 72.695 m², com área construída de 14.903,81 m².
Na inauguração, Guajajara marcou presença e enfatizou que o local, construído com o movimento indígena, a Secretária de Estado dos Povos Indígenas (SEPI) do Pará e a Universidade Federal do Pará, recebeu cerca de 3 mil indígenas e que foi organizado para ser um espaço de acolhimento, com áreas reservadas para garantirem a privacidade dos participantes.
"A participação massiva de indígenas, incluindo 400 credenciados na Zona Azul da COP e cerca de 5.000 presentes em Belém, é resultado de uma luta de décadas por reconhecimento. Uma conferência na Amazônia tem que ter cara indígena, pois não haverá solução para a crise climática sem o protagonismo desses povos, que protegem a floresta com suas vidas”, frisou a ministra, segundo registro de seu próprio ministério. Dias depois, no encerramento da Cúpula dos Povos, no domingo, 16, ela atualizou o dado e informou que já somam 900 indígenas registrados participando da Zona Azul.
Sobre a estrutura, descrevem que "o espaço utilizado pelos indígenas ocupa 46 salas de aula com câmeras de vigilância, ar-condicionado e armários com chave para pertences". O que não é mentira, mas representa apenas parte do que está sendo vivido pelos indígenas que vieram para a COP.
Na parte disponível ao público, as visitas seguem abertas das 9h às 20h30.
*A repórter viajou para Belém com apoio do ClimaInfo