Durante a COP30 em Belém, denúncias apontam remoções forçadas de pessoas em situação de rua, levando o Ministério Público Federal a tomar medidas judiciais contra o município e a União; a Prefeitura nega as acusações e destaca esforços de assistência social.
Enquanto recebe a COP30, a conferência da ONU sobre mudanças climáticas, Belém expõe um contraste social. Apesar dos R$ 4,7 bilhões investidos pelo governo federal na infraestrutura do evento, não foram garantidas condições dignas para as mais de duas mil pessoas em situação de rua na capital paraense. Pelo contrário. Moradores e trabalhadores relatam ao Terra que a Prefeitura promoveu remoções forçadas dessa população, o que levou o Ministério Público Federal (MPF) a acionar judicialmente o município e a União.
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O MPF confirmou ao Terra a abertura de uma apuração para investigar denúncias de que pessoas em situação de rua estariam sendo retiradas à força de Belém por causa da COP30. Segundo o órgão, as denúncias recebidas no último dia 14 incluem relatos de que indivíduos teriam sido encaminhados para outro município. A prefeitura nega qualquer remoção.
Um motorista de aplicativo na capital paraense, que pediu anonimato, relatou uma mudança perceptível no cenário urbano. "Acho que era um mês antes da COP quando chegou pra nós, moradores, que os moradores em situação de rua foram levados para Cotijuba [ilha vizinha]. Estamos vendo um movimento bem menor deles em Belém durante a COP", disse.
Ele guiou a reportagem até a frente de uma grande varejista, ponto tradicional de concentração dessa população. O local, que costumava ficar lotado, estava vazio. "Normalmente aqui, quando aberto, fica lotado deles. Mas, hoje, você vê que não tem nenhum, tá até limpinho", observou.
Um lavador de carros, que trabalha no local há mais de 35 anos, corroborou o relato. "Sempre ficava cheio aqui de morador em situação de rua, mas recolheram aqui para algum abrigo. E todo dia recolhem. Normalmente, quem recolhe é a Sespa [Secretaria de Saúde do Pará], a Guarda, a PM". Segundo ele, a presença da população de rua, agora, só é vista a partir das 18h, quando chegam voluntários para distribuir alimentos.
Em outra região, uma mulher em situação de rua, que preferiu não se identificar, afirmou: "Teve arrastão dos moradores de rua, por isso não tem muitos. De noite, eles foram recolhendo. Quem não quisesse ir pra sua casa, os que têm casa, eles levavam, mas a gente não sabe pra onde".
Reclusão em abrigos
A reportagem também visitou a Casa Abrigo para Moradores Adultos de Rua (Camar), localizado no bairro Campina. Ao chegar ao local, administrado pelo município, um morador em situação de rua tomava sol na área externa, trancado por um portão de ferro. Em uma breve conversa, ele contou que não tinha autorização para sair de lá, mas não deixou claro se estava ali voluntariamente ou não.
Logo, o bate-papo foi interrompido por trabalhadores do abrigo, que barraram qualquer acesso do Terra. Conversas com funcionários ou abrigados --até mesmo do lado de fora da unidade-- somente podiam ser feitas a partir de uma autorização prévia da prefeitura. E somente com esse aval é possível que o portão seja aberto para a saída dos moradores em situação de rua.
Vale destacar que é comum ver moradores nas proximidades desses abrigos, mas o Terra não encontrou nenhum por lá. Enquanto isso, a presença de forças de segurança aumentou. Rondas policiais são vistas com frequência nas regiões que antes concentravam a população de rua, em um movimento que, para os moradores entrevistados, parece mais focado em afastar do que em integrar.
"Agressões e humilhações constantes"
Ao lado da cama improvisada que montou em uma via de Belém, João Ivanildo, de 37 anos, divide a luta pela sobrevivência com a esposa. Há sete anos vivendo nas ruas, ele se tornou testemunha e vítima de uma realidade de agressões e humilhações.
Sobre a violência que cerca sua existência, João afirma: "Já sofremos bastante. Pelo tempo que eu moro na rua, é agressão, humilhação, muitas coisas". Ele detalha que a hostilidade vem tanto de forças do Estado quanto de civis. "Às vezes, é da sociedade geral mesmo. Tem gente que passa, tem raiva de morador de rua, toca fogo, joga pedra, joga garrafa".
A violência, segundo ele, já foi letal para conhecidos. "Já perdi até um amigo meu por causa disso. Ele estava dormindo, os caras desceram do carro e deram com uma pedra na cabeça dele. Morreu", lamentou.
Questionado sobre as operações de remoção de pessoas em situação de rua às vésperas da conferência do clima, João confirmou que o assunto chegou até ele. "Chegou sim. Muitas pessoas estavam falando". No entanto, sua percepção é de que a adesão não foi espontânea. "Eu acho que a maioria tá indo por obrigação mesmo. Por conta da COP", afirmou.
Negligência e falta de políticas públicas
A reportagem testemunhou um possível reflexo da suposta negligência citada por João. Um morador de rua foi visto ensanguentado após ser esfaqueado. A Guarda Civil Municipal (GCM) foi avistada no local, mas, de acordo com um outro trabalhador da região, não agiu. "A GCM viu um furando o outro e viram o morador de rua sangrando e não fez nada", contou.
O Terra permaneceu no local por cerca de 20 minutos e não viu a chegada do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). "Polícia nem liga quando é morador de rua", pontuou um morador.
Há um ano e cinco meses vendendo o “Carimbó da Sorte” em frente aos Correios, na Avenida Presidente Vargas, um dos pontos de grande concentração de pessoas em situação de rua em Belém, Maria Aldenil Brito Ferraz, de 79 anos, se tornou uma observadora atenta da realidade à sua volta.
“Agora, por causa da COP30, eles estão se movimentando para arranjar lugares para recolher eles". Para ela, a ação do poder público é tardia e motivada pela imagem, não por um cuidado com essas pessoas. “Os governantes querem mostrar um Belém bonito, amado. Não adianta nada.”
Maria Aldenil afirma ainda que alguns do moradores de rua que ficam ali enfrentam o vício das drogas, mas enfatiza que a maioria vive em vulnerabilidade extrema. Ela atribui a situação à falta de oportunidades. “Não que a pessoa não preste, é porque a situação de Belém é muito difícil. Temos uns governantes que pouco estão dando clemência para esse pessoal.”
A solução, segundo ela, não está na força, mas na oferta de perspectivas. “Eles precisam de um apoio melhor, de um tratamento. Porque eles não têm o que comer, o que é que eles vão fazer? Não tem emprego. O que é que eles vão fazer?”. Ela descreve cenas diárias de famílias inteiras dependendo da solidariedade alheia para se alimentar. “Você olha para um lado, olha para o outro, eu vejo crianças aqui à noite vindo comer porque estão com fome.”
"Inércia estatal", apontou Justiça
A Justiça Federal determinou, no dia 5 de novembro, que o município de Belém e a União adotem uma série de medidas emergenciais para garantir os direitos fundamentais da população em situação de rua na capital paraense. A decisão estabelece prazos e multas em caso de descumprimento.
Na decisão, a juíza federal Maria Carolina Valente do Carmo destacou a existência de um "estado de coisas inconstitucional" e a "inércia estatal" diante da multiplicação do contingente da população de rua, que passou de 478 pessoas em 2014 para ao menos 2,1 mil, enquanto o número de vagas de acolhimento diminuiu de 80 para 40 no mesmo período.
- O município deve abster-se imediatamente de realizar o recolhimento forçado de bens e pertences, bem como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua, sob pena de multa de R$ 5.000 por pessoa indevidamente removida.
- É vedado o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra pessoas em situação de rua, sob pena de multa de R$ 10.000 por cada situação de descumprimento.
“O MPF vai estar atento ao cumprimento dessa decisão e vamos fiscalizar a atuação do poder público para que, durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima [COP30], e depois dela os direitos fundamentais da população em situação de rua continuem sendo respeitados”, anunciou o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Pará, Sadi Machado.
Caso Belém não apresente os planos de reestruturação determinados até o prazo limite de 26 de janeiro de 2026, estarão sujeitas às seguintes multas:
- Plano de Reestruturação de Serviços de Média Complexidade (incluindo Centros POP, serviços de hidratação, banheiros e lavanderia social): Multa única de R$ 50.000 e multa diária de R$ 5.000, limitada a R$ 500.000.
- Plano de Reestruturação e Ampliação dos Serviços de Acolhimento (acréscimo mínimo de 320 vagas): Multa única de R$ 50.000 e multa diária de R$ 5.000, limitada a R$ 500.000.
- A Justiça Federal advertiu que a utilização de operações de zeladoria urbana, em desvio de finalidade, para obter a higienização social de determinada área será considerada ato atentatório à dignidade da justiça, conforme o Art. 77, IV, do Código de Processo Civil.
Para garantir a efetividade das medidas, foi designada uma audiência de monitoramento e autocomposição para o dia 11 de fevereiro de 2026, com a participação obrigatória de representantes dos réus e de órgãos como o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Os réus deverão apresentar relatórios sobre o cumprimento das obrigações, com o primeiro vencendo em 12 de dezembro de 2025.
O que dizem os órgãos públicos
Em nota, a Prefeitura de Belém, por meio da Fundação Papa João XXIII (Funpapa), afirma que não existe qualquer tipo de “recolhimento forçado” sendo realizado. Segundo a administração municipal, as equipes da Funpapa desenvolvem, de forma contínua, ações integradas de proteção social voltadas à população em situação de rua, por meio do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), dos Centros POP e dos Centros de Acolhimento Municipal de Alta Rotatividade (CAMAR).
"Após cada abordagem, o encaminhamento às unidades de acolhimento ocorre apenas mediante a vontade da própria pessoa abordada. Esses serviços oferecem acolhimento, alimentação, higienização, emissão de documentos, acesso à saúde, reintegração familiar, inserção no mercado de trabalho e capacitação profissional, reafirmando o compromisso da Prefeitura de Belém com o tratamento humano, digno e o respeito aos direitos da população em situação de vulnerabilidade social", diz o município.
O Terra entrou em contato com o Governo Federal e com o Governo do Estado do Pará e aguarda retorno.