Opinião: qual é o grande equívoco da CPI contra bailes funk em SP?
Vereadores e depoentes falam dos pancadões como se sempre houvesse uma organização central, com palco, atrações e contratantes
Os pancadões não são chamados de 'fluxo' por acaso. Nas periferias de São Paulo, os bailes funk são grandes aglomerações de pessoas em ruas, adegas e praças, reunidas ao redor de carros, e independem da presença de cantoras ou cantores se apresentando ao vivo.
Por desconhecimento ou estratégia política, a CPI dos Pancadões e seus depoentes alimentam um equívoco sobre os bailes funk em São Paulo: o pancadão não tem um ponto central — é uma gigantesca reunião de pessoas aglomeradas nas portas de casas, em volta de carros e paredões de som, adegas, motos, barzinhos, praças e vielas, a perder de vista.
O baile funk é um 'fluxo', não um evento fechado com portaria, segurança, ingresso, número limitado de frequentadores e atrações definidas. Essa incompreensão, porém, fica cada vez mais evidente na CPI dos Pancadões: nem os vereadores parecem ter entendido, nem os depoentes parecem preparados para explicar.
E uma explicação minimamente clara evidenciaria a quantidade de perguntas e respostas sem sentido. Por exemplo: o crime organizado organiza o baile funk? Sozinho, jamais. É claro que criminosos podem bancar atrações, bebidas ou comida, mas ninguém controla, sozinho, o baile inteiro. Ou o PCC abandonaria o tráfico de drogas para vender cachorro-quente?
Para isso, o crime organizado teria de ser dono dos bares, adegas, lanchonetes, carros, paredões de som e de tudo o que rola no baile — que, repito, não tem uma organização central, embora páginas de funk e alguns estabelecimentos anunciem atrações. Mas, se elas não vierem — ou sequer existirem —, o baile acontece do mesmo jeito.
Como disse, de passagem, Salvador da Rima à CPI dos Pancadões, 'o baile vai acontecendo', como constatou o Visão do Corre no Jardim Pantanal, zona leste de São Paulo. Lá, a festa ocupa várias ruas e não se ouve apenas funk: há pessoas ouvindo sertanejo em frente de casa; grupos curtindo pagode no som do carro; motinhas infernais passando e tirando fina; e gente parada, passando, chegando e saindo.
O baile é uma muvuca, por isso não faz sentido chamar apenas donos de adegas para depor na CPI. A festa mobiliza comércios com e sem alvará, incluindo quem vende água, geladinho, churrasquinho e motoristas de aplicativos. E, evidentemente, se há tráfico, ele pode lucrar mais; porém, o baile dura, no máximo, o fim de semana, enquanto o tráfico é de segunda a segunda.
A incompreensão do baile como fluxo dificulta a fiscalização, que, para ter alguma eficácia, precisaria atuar em diversos locais, com diferentes abordagens para distintas situações: verificar alimentos, horário e volume da música, presença de menores, possíveis adulterações de bebida, roubo de motos e carros, tráfico e falta de alvará.
Mas os depoimentos de fiscais e policiais — os únicos com alguma relevância para o objetivo declarado da CPI, que é verificar a fiscalização — deixaram claro que equipes multidisciplinares são raras e enfrentam enormes dificuldades para serem montadas, pois envolvem diversos órgãos e instâncias municipais, estaduais e até federais.
Essa situação esdrúxula pode ser resumida na frase irônica do pesquisador Thiago de Souza à CPI dos Pancadões, que começou seu depoimento dizendo: “Tentar trazer ciência para algumas pessoas é tão difícil quanto ensinar uma pedra a nadar”.