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Europeus tipificam crime de corrupção no setor privado desde o início do século passado

União Europeia determina, desde 2003, que os estados-membros criminalizassem a prática

14 jul 2018 - 05h12
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Realidade há mais de um século em países europeus como França, Inglaterra e Alemanha, a tipificação da corrupção entre agentes do setor privado, que ainda não saiu do papel no Brasil, tem sido estimulada no cenário internacional ao menos durante últimos 15 anos. Em 2003, o País foi um dos signatários da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que recomenda que o pagamento de propina entre particulares seja considerado crime pelos países.

"A ONU recomenda e um número de países cada vez maior já trata a matéria em sua legislação, como EUA, Inglaterra, Alemanha, França, China e Coréia do Sul", afirmou o advogado Beto Vasconcelos, que foi coordenador da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) e secretário nacional de Justiça."O movimento de tipificação no mundo tem acontecido", afirma o criminalista Conrado Gontijo. Países latino americanos, a exemplo do Uruguai, têm avançado em projetos de lei sobre o tema.

Também em 2003, a União Europeia determinou em decisão que os estados-membros criminalizassem a prática de corrupção privada. Portugal foi um dos que se adaptou à determinação e, em 2008, definiu expressamente em lei os crimes de corrupção passiva e ativa no setor privado, com penas de prisão ou multa. Em ambos os casos, a pena é mais alta se a prática causar distorção na concorrência ou prejuízo material. O modelo português foi apresentado por membros do Ministério Público brasileiro durante os debates recentes da Enccla como exemplo a ser adotado no País.

Autor de livro sobre corrupção privada, Gontijo explica que os Estados Unidos foram contrários à exigência da tipificação da corrupção privada na época da Convenção da ONU. Por influência norte-americana, segundo o especialista, a Convenção de Mérida recomenda como "facultativa" aos países signatários a tipificação criminal da propina entre particulares.

"O Brasil se comprometeu, na Convenção de Mérida (texto da ONU contra a corrupção), a fazer uma série de tipificações. A do setor privado entra nas facultativas, mas a compreensão que se tem é de esse fenômeno tem impactos tanto na livre concorrência, salubridade dos negócios e reação em cadeia com eventual formação de oligopólios", afirma o procurador regional da República, Vladimir Aras, que ex-secretário de cooperação jurídica internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Aras explica que sem a tipificação do crime não é possível cooperar no âmbito penal com outros países que estejam investigando brasileiros pelo crime de corrupção privada. "Podemos ter situações de absoluta tipicidade. Se um investigado vem o Brasil e não temos a legislação desse crime, a extradição é impossível e não há como cooperar criminalmente. É uma situação de vácuo que, no contexto de cooperação internacional, é indesejável e coloca o Brasil numa posição desagradável", afirma o ex-secretário de cooperação internacional da PGR.

Em países que já tipificaram o pagamento de propina no âmbito privado como crime, a principal diferença se dá no interesse que o legislador local buscou proteger. Há leis que priorizam a lealdade e confiança das relações de negócios, enquanto em outras o foco é o patrimônio das empresas ou ainda a concorrência dos mercados.

Na Alemanha, a tipificação, segundo Gontijo, teve início em 1909 com viés de proteção da concorrência. "Já na França, o que motiva a criação da norma francesa é uma crise de abastecimento no pós-guerra, em um cenário de escassez de produtos de necessidade básica. Quem tinha os produtos passou a exigir vantagens indevidas para vender para uns e não para outros. O tipo (penal) veio para garantir uma distribuição justa", afirma Gontijo. Assim como a legislação francesa, segundo ele, na Inglaterra o enfoque também é nas relações de confiança dos negócios.

Modelo americano. Nos Estados Unidos, o departamento de Justiça se vale da previsão de crimes como fraudes, conspiração ou lavagem de dinheiro para investigar e punir casos de corrupção entre particulares no âmbito federal. As leis federais, nesses casos, englobam a conduta de corrupção privada ainda que o crime não receba este nome de forma direta na legislação federal.

"Nos EUA os crimes são acumulados uns aos outros e alguns têm tipificação ampla. No Brasil, o problema é que se não existe especificamente tipificação de corrupção privada é discutível tentar utilizar outros crimes, que não foram previstos para esse tipo de situação. Mesmo quando acaba funcionando no caso brasileiro, a pena é baixa, porque são tipificações pensadas para situações muito menos complexas, como o estelionato", afirma João Pedro Pádua, professor de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-doutorando da Brooklyn Law School, em Nova York.

A investigação sobre esquema de corrupção montado na FIFA - que atingiu por exemplo o ex-presidente da CBF José Maria Marin - expôs a discussão sobre o pagamento de propina no setor privado. Ao federalizar o caso, o DoJ citou crimes como fraude e lavagem de dinheiro.

Há leis federais americanas para situações privadas específicas, consideradas mais sensíveis, como os serviços de saúde. Esse é o caso do "Anti-Kickback Statue", que proibe o oferecimento ou recebimento de dinheiro para induzir o uso ou a negociação de planos de saúde.

A maioria dos Estados norte-americanos também possuem, em seus códigos penais, a previsão da chamada "propina comercial". Segundo estudo publicado na revista International Review of Penal Law, de 2002, ao menos 34 Estados dos EUA possuem em sua legislação a previsão da "propina comercial". O tipo penal é previsto expressamente também no "Model Penal Code", um código que serve de inspiração para as leis penais estaduais no país.

Estadão
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