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Guerra Fria na Ásia, o americano tranquilo

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Voltaire Schilling

Graham Green, falecido em 1991, provavelmente foi o mais prolífico e bem sucedido dos romancistas ingleses do século XX. Século que ele, nascido em 1904, quase que o viveu por inteiro. Escritor cosmopolita, súdito do então maior império do mundo, o britânico, sua obra, múltipla e interessante, confere com o périplo dele pelos países e continentes do mundo inteiro como um qualificado homem de informações do SIS, o serviço secreto de Sua Majestade, ao qual ele, apenas oficialmente, teria deixado depois da Segunda Guerra Mundial.

O agente da CIA e o jornalista inglês, próximos, mas rivais (filme The quiet american)
O agente da CIA e o jornalista inglês, próximos, mas rivais (filme The quiet american)
Foto: Voltaire Schilling / Reprodução

O triângulo amoroso
No ano de 1955, Green publicou um romance politicamente premonitório intitulado The quiet american (O americano tranquilo) enfocado nos estertores finais do domínio colonial francês sobre a Indochina, apontando o crescente, mas então secreto envolvimento dos norte-americanos no Sudeste Asiático.

Numa leitura superficial a novela de Greene é a agitada narrativa de um triângulo amoroso que ocorre em Saigon, ao redor de 1952-3, composto por um veterano jornalista britânico, uma jovem e bela vietnamita e um recém-chegado agente norte-americano, puritano e idealista, supostamente encarregado de promover tarefas filantrópicas.

Thomas Flower é um profissional calejado que é correspondente do London Times encarregado de fazer a cobertura da guerra que os franceses travam contra as forças da guerrilha do Vietmin (o movimento comunista de libertação nacional do Vietnã, fundado por Ho Chi Min).

Alden Pyle (personagem inspirado diretamente no coronel Edward Lansdale, um agente de operações da CIA), é um jovem bem posto que é destacado para Saigon com a missão de assumir funções especiais sob a capa de auxilio humanitário.

O pomo da discórdia entre eles é a bela Phuong, uma ex-dançarina de boate que é mantida pelo jornalista inglês a quem ele não pode prometer casamento visto sua mulher ser uma inglesa católica, a qual, por motivos religiosos, nega-lhe o divórcio.

A proposta do americano
Certa noite, convidado por Flower a um restaurante de Saigon, Pyle ao dançar com a vietnamita apaixona-se à primeira vista pela amante do inglês. Uns tempos depois, sabendo que o rival não obteria o divórcio, Pyle, muito senhor de si, não se intimida em procurar Flower, então em plena cobertura de uma operação de guerra da Legião Estrangeira contra a guerrilha vietnamita, para convencê-lo, em meio ao tiroteio, a que lhe permitisse ficar com a bela Phuong.

É uma situação embaraçosa, visto que Flower gostava muito da moça e evidentemente não estava disposto em cedê-la ao americano. Pyle, por sua vez, um sincero rapagão de Boston, estava inclusive disposto a levar a vietnamita para os Estados Unidos depois de encerrada a sua missão.

A leitura simbólica dessa situação conduz à conclusão de que Greene de fato expressou literariamente o conhecido desconforto e ressentimento dos britânicos (especialmente dos escalões do funcionalismo imperial), súditos de um império decadente, em se verem atropelados pelo poder emergente do império americano, representado na novela por Pyle, que desejava afastar os ingleses da cena e ficar com a jovem Phuong (a Ásia) para eles.

Desde aquele momento, os dois sustentam uma competição tensa, mas educada e cavalheiresca, para atrair o coração da asiática, reproduzindo mais ou menos a mesma relação que britânicos e norte-americanos mantinham durante a Guerra Fria.

A intervenção americana
Havia nos altos escalões de Londres um arraigado sentimento de que os Estados Unidos, aproveitando-se da situação de desgaste que a Grã-Bretanha sofrera na Segunda Guerra Mundial, estavam lhes despojando o império mundial.

Imensos nacos de territórios na África e na Ásia, que antes estavam sob o controle dos ingleses, mantidos na órbita da libra esterlina, caiam um por um nas mãos dos norte-americanos. Era essa avidez e sem-cerimônia com que os ianques iam passando a mão em tudo, pegando o que lhes interessava é o que os irritava profundamente.

O que acontecia naquele momento no Vietnã era exemplar da desfaçatez dos americanos. Lá também um império colonial, o francês, agonizava, e os homens enviados de Washington, a pretexto de dar auxílio econômico e humanitário, já se faziam presentes articulando e financiando secretamente uma alternativa favorável aos Estados Unidos. Uma terceira via fiel a eles que se distanciasse do colonialismo europeu e do comunismo soviético.

Na ocasião, a CIA promovia como seu "homem providencial" o general Thé, um típico homem-de-palha escolhido pelos serviços secretos para dar "um toque nativo", uma cobertura necessária à política de intervenção norte-americana na região.

Greene registrou que o mesmo que se passava com os franceses (vendo seu império colonial cair nas mãos dos norte-americanos), por igual acontecia com o império britânico.

Num relato-denúncia descreveu uma brutal ação de terrorismo preparada pela CIA em Saigon - toda ela coberta por fotos impressionantes, flagrantes tirados no momento seguinte à explosão dos carros-bomba, com as vítimas dilaceradas, sangrando e agonizando na rua.

Tratava-se de uma manobra de provocação dos agentes de operações para ganhar apoio junto à opinião pública norte-americana para uma futura intervenção armada. As imagens chocantes, reproduzidas com fartura nos jornais mais importantes e nas revistas de propaganda do Departamento de Estado, serviriam para formar uma base psicológica e emocional para que os Estados Unidos viessem a interferir na Indochina, logo que ocorresse a saída dos franceses, para protegerem os civis vietnamitas daquele tipo de cruel massacre praticado às vistas de todos.

Esta parte do livro arrancou depois indignados protestos de alguns jornais e críticos americanos que viam no relato uma irresponsável fantasia do escritor.

Flower, casualmente presente no momento do atentado, vira Pyle andando entre os mortos e mutilados apontando as piores cenas para um "providencial" fotógrafo que estava lá a serviço do agente. Aquilo, logo deduziu o experiente jornalista, não podia ser coincidência. De fato, como Pyle francamente havia exposto ao inglês, os norte-americanos entendiam o Vietnã como um front de enfrentamento com a China Comunista e quanto mais rápida fosse a chegada deles lá melhor poderiam combater os maoístas, cauterizando-lhes a influência. Dez anos depois da publicação do livro 500 mil soldados norte-americanos estavam lutando no Vietnã.

A China Comunista é que era inimiga
As ações do pessoal do serviço secreto estavam afinadas com a estratégia anticomunista exposta no livro de York Harding, intitulado The Advance of Red China and the role of the West, para quem Ho Chi Min, o líder vietnamita que lutava contra o colonialismo francês, era apenas um fantoche do comunista Mao Tse Tung. O Vietnã, em si, não possuía particularidades ou interesses nacionais algum, era somente um peão no enorme tabuleiro da Guerra Fria. Uma pequena peça do grande jogo contra o comunismo. Posição essa que, como se sabe, foi fatal para a posterior derrota dos Estados Unidos no Sudeste Asiático.

Poucas novelas da época da Guerra Fria foram tão proféticas como a de Green, pois em grande parte tudo se deu de acordo com as previsões feitas pelo romancista - somente ele não profetizou foi o desastre final dos ianques.

O site recomenda
Graham Greene - O Americano Tranqüilo (The quiet american, 1955)

Fonte: Redação Terra
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