Lei Magnitsky não impactou distribuição de processos entre ministros do STF, avaliam especialistas
REGRA INTERNA DO SUPREMO DETERMINA QUE CASOS SÃO ATRIBUÍDOS POR SORTEIO OU PELO CRITÉRIO DA PREVENÇÃO
O que estão compartilhando: postagem afirma que, após as sanções da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes, os processos "milagrosamente" pararam de cair com o ministro no Supremo Tribunal Federal (STF) e "passaram a ser distribuídos para outros". Como exemplos da alteração, a postagem cita: um pedido de prisão domiciliar do ex-deputado federal Daniel Silveira, que foi para o gabinete do ministro Luiz Fux; e uma ação contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) por supostamente articular sanções ao Brasil, que foi para o ministro Kassio Nunes Marques.
O Estadão Verifica checou e concluiu que: é enganoso. Especialistas avaliam que as sanções do governo dos EUA aplicadas a Moraes não têm impacto na distribuição de processos no STF. O Regimento Interno do Supremo (RISTF) determina que os casos são distribuídos por sorteio ou por prevenção, quando são considerados semelhantes. Os magistrados não têm prerrogativa para escolherem processos na Corte.
Saiba mais: o governo de Donald Trump aplicou a Lei Magnitsky contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. O dispositivo legal impõe sanções financeiras a estrangeiros acusados de corrupção ou violações graves de direitos humanos. Trump justificou a decisão como uma reação à condução do processo que julga o ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de estado.
Após a aplicação da Lei Magnitsky, circularam nas redes sociais postagens sugerindo que as sanções tiveram impacto no sistema de distribuição de processos no STF. Moraes é alvo de críticas da oposição porque grande parte dos inquéritos sob sua alçada investigam apoiadores do ex-presidente.
O pedido de habeas corpus feito pela defesa de Daniel Silveira foi enviada ao ministro Luiz Fux porque recorria a uma decisão de Alexandre Moraes. Ou seja, por regra, o próprio ministro não poderia julgar o caso. Fux negou a solicitação, argumentando que não é possível recorrer por meio de habeas corpus contra decisões do STF.
Já no caso de Eduardo Bolsonaro, a ação foi sorteada a Nunes Marques porque tratava-se de um processo de natureza cível. Moraes é relator de um inquérito criminal que investiga a atuação do deputado contra o Judiciário nos Estados Unidos. Por serem casos de ramos diferentes do direito, não se aplica a regra da prevenção na distribuição.
Especialistas entrevistados pelo Estadão Verifica explicaram que a divisão de processos não tem ingerência humana. O professor Felipe Fonte, do Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV/RJ), avalia que a legislação americana não tem poder para alterar o sistema que atribui casos aos ministros do STF.
"A Lei Magnitsky pode ter muitos impactos, mas se tem um campo em que definitivamente isso não vai acontecer é na distribuição de processos no STF", afirma. "Ela é feita segundo regras técnicas, o Supremo tem um algoritmo que faz isso eletronicamente."
O professor Marco Antonio Rodrigues, do Departamento de Direito Processual da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), também ressalta que o regulamento do STF prevê uma distribuição automática e aleatória. "Na verdade, não há como isso (a lei Magnitsky) ter impacto porque a distribuição de processos é automática por sorteio. É uma maneira de proteger a própria imparcialidade", explica.
Distribuição aleatória de processos no STF
O capítulo III do Regimento Interno do STF determina, no artigo 66: "A distribuição será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo". Isso significa que o mecanismo é feito de maneira aleatória, para assegurar a imparcialidade no julgamento.
Para a regra de sorteio, o STF utiliza um sistema eletrônico que realiza a seleção automática de um ministro relator para cada novo caso. O procedimento funciona com base em uma "régua", que vai de 0 a 100, sendo cada dezena representada por um ministro da Corte. Cada ministro possui dez números, e o processo cai com quem corresponder ao número sorteado.
Caso um ministro seja declarado impedido ou suspeito para relatar algum caso, segundo critérios de imparcialidade e conflito de interesses, o processo é redistribuído. Ou seja, novos números são definidos e um outro sorteio é feito entre os magistrados que estão aptos.
Distribuição de processos por prevenção
Já a aplicação do sistema de prevenção ocorre quando processos de natureza semelhante são encaminhados ao mesmo ministro. A avaliação do que deve ser encaminhado junto é feita pela Secretaria Judiciária do STF.
O professor Rodrigues explica que essa regra ocorre quando há conexão entre os processos. "Isso se dá em situações em que existe um elemento comum entre os casos que justifique essa reunião", diz. Segundo ele, o princípio também evita ocorrências de decisões conflitantes sobre o mesmo assunto.
A distribuição ainda segue critérios para manter equilíbrio na carga de trabalho entre ministros, com regras para compensação. O presidente da Corte, que ocupa funções administrativas e de representação, não entra na divisão comum dos processos.
Moraes recebeu inquéritos pela regra de prevenção do STF
O portal Corte Aberta do Supremo mostra que o ministro Alexandre de Moraes concentra mais da metade dos inquéritos em tramitação, com 28 dos processos. O total de investigações atualmente no STF é de 45.
A partir dos dados do Supremo, o Verifica identificou que 25 processos sob a relatoria de Alexandre de Moraes foram estabelecidos a partir do princípio da prevenção. Além disso, um deles foi atribuído ao ministro por sorteio e dois estão com documentos sob sigilo no site da Corte.
Segundo o professor Fonte, Moraes recebe muitos dos inquéritos criminais devido à conexão entre os processos. "Tratam de algo que já está na possibilidade dele investigar. A lógica é evitar decisões conflitantes", diz.
"Não há nada de excepcional. Isso é parte da atividade cotidiana, não só do Supremo Tribunal Federal, mas de qualquer outro tribunal do País", afirma o especialista em Direito Constitucional.
Inquéritos sob a relatoria de Moraes
O ministro Alexandre de Moraes concentra a relatoria dos principais casos relacionados à tentativa de golpe de estado atribuída ao ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados. Ele também é relator de processos sobre os ataques do 8 de Janeiro, atuação de milícias digitais e de atos antidemocráticos.
Em 2019, Moraes se tornou relator do inquérito das fake news, que investiga a disseminação de notícias falsas contra ministros do STF. Ele foi designado ao processo por Dias Toffoli, então presidente da Corte. O inquérito foi criticado à época porque foi aberto de ofício, ou seja, sem pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A abertura do inquérito foi justificada por Toffoli com base em uma norma do regimento interno da Corte. A regra permite a instauração de investigação quando ocorre infração nas dependências do tribunal, que nesse caso foi interpretada como possíveis ameaças contra os ministros.
Como publicou o Estadão, o inquérito foi alvo de polêmicas e debates jurídicos por ser considerado incomum. Contudo, em 2020, o STF decidiu dar aval à continuidade das investigações com 10 votos a 1.
A partir deste caso e devido à regra da prevenção, o ministro Moraes recebeu novos inquéritos. Em 2021, foi aberta uma investigação para apurar o financiamento e organização de atos antidemocráticos no País, a partir de um pedido da PGR. Isso ocorreu após manifestações que pediam ditadura militar, intervenção das Forças Armadas e atacavam instituições democráticas.
O inquérito foi arquivado em julho de 2021 por determinação de Moraes. Na mesma decisão foi aberta a investigação das milícias digitais. Ela foi baseada em uma análise da Polícia Federal sobre a atuação de uma organização criminosa para atacar a democracia e o Estado de Direito.
Neste inquérito também estão outras investigações, como a suposta venda de joias presenteadas por autoridades da Arábia Saudita ao governo Bolsonaro e a falsificação de cartões de vacina, arquivada em março deste ano. Há ainda o processo contra o dono do X, Elon Musk, por "dolosa instrumentalização" da rede social.
Os atos do 8 de Janeiro resultaram em novos inquéritos abertos em 2023 para apurar as condutas de financiadores, autores intelectuais e executores da invasão e depredação de prédios públicos em Brasília (DF). Eles também ficaram sob a relatoria de Moraes pela regra da prevenção.
Em março, a Primeira Turma do STF aceitou a denúncia da PGR e tornou Bolsonaro e outros sete aliados réus por tentativa de golpe de Estado. O ex-presidente, que atualmente está em prisão domiciliar, responde por cinco crimes.
Moraes também é relator da ação que investiga o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) pela atuação nos Estados Unidos contra autoridades brasileiras. A PGR atribui ao parlamentar uma campanha de intimidação e perseguição contra integrantes da Procuradoria, do Supremo e da Polícia Federal em processos contra o seu pai.
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