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Jogos de Paris

Casal de denunciantes de doping na Rússia vive no subúrbio dos EUA

Vitaly e Yuliya Stepanov foram os primeiros a denunciar as fraudes no esporte russo antes dos Jogos Olímpicos do Rio

27 dez 2019 - 12h02
(atualizado às 13h32)
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Em um sábado de dezembro, eles competiram em corridas de final de ano em que alguns participantes usavam macacões de rena. No fim do dia, pararam em uma loja de US$ 1 para comprar presentes de Papai Noel e os colocaram na varanda de um vizinho. "Somos como qualquer família americana de classe média", disse Vitaly Stepanov sobre a vida com sua mulher, Yuliya, e seu filho do jardim de infância, Robert. "Exceto pela parte das denúncias."

Ah sim. Aquilo. Os Stepanov não são uma família típica. Yuliya, 33 anos, já foi a principal corredora de média distância da seleção russa de atletismo. Hoje com 37 anos, Vitaly trabalhou para a Agência Antidopagem Russa. Agora, vivendo na América, o casal faz o possível para manter discrição em uma cidade que prefere não mencionar. Eles têm um passado complicado.

Os Stepanov denunciaram o vasto programa de doping da Rússia, patrocinado pelo Estado, antes dos Jogos Olímpicos de 2016. As informações que eles forneceram, incluindo gravações secretas que Yuliya fez com treinadores e atletas, levaram a Rússia a ser barrada dos eventos de atletismo nos Jogos no Rio de Janeiro. A revelação também abriu caminho para que Grigory Rodchenkov, ex-chefe do laboratório antidoping de Moscou, divulgasse seu papel na ocultação dos fracassados testes de doping de atletas russos nos Jogos de Inverno de 2014 em Sochi, na Rússia.

As consequências das revelações ainda reverberam. Os esforços contínuos da Rússia para encobrir o escândalo resultaram recentemente em uma nova e mais rígida proibição nos esportes internacionais.

Mas os Stepanov também pagaram um preço. Em 2014, dois dias antes de um documentário alemão detalhar suas acusações de doping, o casal deixou a Rússia com quatro malas e seu filho recém-nascido. Eles se mudaram para a Alemanha, fugindo para um futuro incerto.

Nos anos seguintes, os ex-colegas de equipe de Yuliya os rotularam como "traidores". O presidente da Rússia, Vladimir Putin, usou o termo "Judas". Com a promessa de um emprego que não se concretizou, os Stepanov se mudaram para os Estados Unidos em 2015. No ano seguinte, eles pediram asilo, mas a solicitação ainda está pendente.

Depois de se mudarem pelo menos seis vezes desde que deixaram a Rússia, eles vivem em uma espécie de "limbo sem pátria". Segundo duas pessoas familiarizadas com situação, eles têm cooperado com as autoridades que investigam fraudes relacionadas a doping na Rússia. Robert comemorou seu sexto aniversário em um parque de trampolim com amigos e disse que quer ser zoólogo para ajudar animais como seu peixe de estimação, Racer. "Sinto-me em casa aqui, e estou feliz. Acordo todas as manhãs com minha família e tenho essa bela vista", disse Yuliya de sua cozinha, enquanto observava uma dúzia de veados pastando. "Sinto que era meu destino acabar aqui."

Seus treinadores se voltaram contra ela quando recebeu uma proibição de dois anos por testes sanguíneos que indicavam doping. Seus colegas de equipe, até mesmo sua melhor amiga, se recusaram a ficar ao lado dela e combater o doping na equipe. Quando chegou aos Estados Unidos, ela disse que já havia cortado a maioria dos laços fora de sua família. Ela é cautelosa com novos amigos.

Os Stepanov se sustentam por meio de acordos financeiros com o Comitê Olímpico Internacional. Vitaly trabalha como consultor e se encontra com o presidente do COI, Thomas Bach. Yuliya recebe uma bolsa do COI para o treinamento de atletas na Olimpíada. É improvável que ela consiga algum dia voltar a participar dos Jogos.

Apesar da renda - muito mais do que os US$ 18 mil (R$ 73 mil) por ano que Vitaly disse que estaria ganhando na Agência Russa Antidoping - os Stepanov vivem de maneira simples. A maioria de seus móveis veio do Craigslist ou de benfeitores locais. Ela dirige um Ford Escape 2012 com quase 300 mil km rodados. O jantar mais comum é a pizza especial de US$ 5,99 da Domino's.

Vitaly, que cursou o ensino médio e uma faculdade nos Estados Unidos, obteve dois diplomas on-line. Ele espera trabalhar com esportes olímpicos um dia. Yuliya se matriculou para aprender inglês, mas achou mais fácil captar palavras assistindo a filmes legendados. A série "Harry Potter" é uma de suas favoritas.

Uma das poucas pessoas com as quais Yuliya e Vitaly conversam é Patrick Magyar, ex-vice-presidente da Diamond League, a prestigiada série de encontros globais de atletismo. Ele se tornou seu conselheiro não oficial em 2014, logo depois que eles deixaram a Rússia. Magyar, que se aposentou do esporte em 2017, ajuda Yuliya com seu treinamento.

Magyar ainda não contará com Yuliya na Olimpíada. Apesar das lesões nas últimas temporadas, ele disse que ela tem uma resistência que ele nunca viu. Dentro e fora da pista. "A força mental dessa mulher é inigualável. Não é típico de Yuliya desistir, mesmo que as possibilidades sejam contra ela", disse o dirigente. "Aconteça o que acontecer, ela ficará muito bem Vitaly é um cara muito esperto. Se eles soubessem que poderiam ficar nos Estados Unidos, suas vidas estariam definidas", afirmou. Tradução de Claudia Bozzo

Estadão
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