'Foi Apenas Um Acidente' é forte, mas não é um grande filme
Se Jafar Panahi não tivesse ido ao Festival de Berlim, provavelmente seu filme não teria vencido e se tornado um favorito em outras premiações, como o Globo de Ouro anunciado nesta segunda. 8
Em 2011, ao agradecer seu prêmio de melhor atriz em Cannes por Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami, Juliette Binoche fez um discurso em que citava Jafar Panahi, que, no ano anterior, havia sido condenado pelo Tribunal Revolucionário Islâmico. Considerado inimigo do regime, foi declarado impedido de filmar, mas conseguiu driblar a ordem, e de deixar o país - essa regra, porém, ele teve de cumprir.
Em maio deste ano, Juliette presidia o júri do Festival de Cannes, havia um Panahi na competição, as restrições haviam sido levantadas em 2023, mas até o último momento havia dúvida se ele estaria presente à apresentação de Foi Apenas Um Acidente. A pergunta que não quer calar é: se Panahi em pessoa não estivesse em Cannes, em maio, a Palma teria ido para seu filme?
A dúvida é essencial em Foi Apenas Um Acidente. Está no centro da própria trama. Na sua fase de confinamento, Panahi já havia colocado o Irã dentro de um táxi, do qual ele próprio era motorista, levando o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2015 por Táxi Teerã. Foi Apenas Um Acidente começa agora dentro de outro carro. Pai, mãe - e ela está grávida -, filha. Conversam, uma típica conversa de família, que volta para casa. O carro sofre uma avaria. É preciso buscar uma oficina. É justamente na oficina que o ponto de vista muda.
De cara, o espectador não entende direito a mudança. De repente, é um mecânico, na oficina, que vê o dono do carro apenas parcialmente. Adotando seu ponto de vista, Panahi filma só suas pernas, quando ele caminha para lá e para cá. Logo virá a explicação. Ele é o torturador que tinha/tem uma particularidade - é manco, e por isso era chamado de Perna de Pau.
Prestes a enterrar vivo o Perna de Pau - tudo acontece rapidamente -, nosso homem vacila porque não tem certeza de sua identidade. Parte em busca de confirmação. Outra vítima o incentiva a deixar o assunto para lá, a não querer fazer justiça com as próprias mãos. Uma questão de ética, porque eles não são como os lacaios do regime.
Mas ele prossegue - vai atrás da agora fotógrafa que tira fotos para um casamento. A noiva também foi vitima. Saem de carro pelas ruas de Teerã. Panahi coloca humor no horror de seu drama. O carro já era frequentado por todo tipo de pessoas, algumas bizarras. O grupo tem de empurrar a van quando a bateria morre e ela para no meio da rua. São cenas filmadas de longe. A presença da noiva provoca um efeito insólito e até cômico. Ainda falta mais um integrante masculino, o quarto elemento, atormentado porque o Perna de Pau o forçava a acariciar sua perna danificada. "Sabe o horror que isso representava para mim?", ele pergunta, e o espectador mal consegue intuir.
Mais tensão na narrativa
Foi Apenas Um Acidente começa e se desenvolve dessa maneira durante mais de metade do relato. Drama moral, humor, horror. Quando a van é parada pela guarda revolucionária é preciso despistar os agentes, para que não revistem o veículo e encontrem o Perna de Pau. Panahi agrega tensão. A todas essas, a dúvida está instalada. E se ele não for o carrasco?
Só que Panahi não leva até o fim esse jogo de gato e rato com as emoções do espectador. A chave, mais uma vez, vira a partir de determinado momento. O Irã autoritário que exclui parte de seus cidadãos, como Panahi e outros cujos casos não alcançam repercussão mundial, continua presente.
O filme segue valoroso como testemunho, possui qualidades como cinema, e por isso todos os prêmios. Mas é como se Panahi, de alguma forma, recuasse e retirasse de Foi Apenas Um Acidente a ambiguidade que era seu aspecto mais interessante.
Algo ocorre - uma revelação que diminui o impacto de seu cinema político, como se ele, astuciosamente, estivesse dosando a força de sua acusação. Sem dúvida, desloca-se a culpa. E a moral. Histórias de vingança, afinal, nutrem o cinema de Hollywood. Como diz Marcos Uzal no editorial de setembro da prestigiada revista Cahiers du Cinéma, Foi Apenas Um Acidente provoca frisson, mas culpabiliza sem realmente afrontar, ou importunar - como faz Navad Lapid com o Exército e a elite dirigente de Israel em Yes, que também estava em Cannes, mas não na competição.
Sem entrar em detalhes para evitar spoiler, é como se a questão moral levantada pelo filme finalmente o tirasse do eixo e enfraquecesse a fábula. É um bom filme, não excepcional. A dúvida permanecerá para sempre - se Panahi não estivesse em Cannes, seu filme teria vencido?
A vitória de Foi Apenas Um Acidente virou emblema da defesa da liberdade de criação dos artistas e isso provoca empatia, estimula a adesão, não é preciso estar num festival de cinema.
O importante é que, em toda história do cinema, apenas dois diretores venceram a tríplice coroa. Palma de Ouro, Urso de Ouro, Leão de Ouro. Cannes, Berlim e Veneza. Panahi é um deles - recebeu o Leão por O Círculo, no ano 2000. Robert Altman é o outro. A glória é eterna, mesmo que em Cannes, este ano, houvesse filmes melhores. O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho?