Salvador mostra que céu das cidades brasileiras podem virar rotas de drones
A mobilidade aérea - seja de pessoas ou de cargas, como os materiais biológicos transportados pelo Fleury - será um dos temas principais do Cidade CSC, evento que acontece em São Paulo nesta semana
Durante décadas, o compositor Dorival Caymmi celebrou o mar de Salvador em suas canções. Se estivesse vivo hoje, além de cantar barcos e pescadores, talvez ele pudesse criar letras que homenageassem os drones que sobrevoam a cidade. Desde 2023, os veículos aéreos não tripulados têm sido utilizados pelo Grupo Fleury, em parceria com a startup paulista Speedbird, para o transporte de materiais biológicos na capital baiana. Ao longo de uma rota de 40 quilômetros que sobrevoa o mar, os drones transportam materiais de exames, acelerando as análises clínicas - e mostrando como a inovação pode repensar a mobilidade urbana e a logística em grandes cidades brasileiras.
A mobilidade aérea - seja de pessoas ou de cargas, como os materiais biológicos transportados pelo Fleury - será um dos temas principais do Cidade CSC, evento que acontece em São Paulo nesta semana. Em sua 10ª edição, o encontro de cidades inteligentes e inovação urbana começa nesta quarta-feira, 23, no Expo Center Norte, zona norte da capital paulista. Para Paula Faria, idealizadora do evento, a pauta faz parte de uma agenda ampla de cidades inteligentes. "Os drones logísticos já deixaram de ser uma curiosidade futurista e se tornaram uma solução real em lugares como Salvador", diz a executiva.
Laboratório a céu aberto
A geografia única da capital baiana - uma península cercada pelo mar, com barreiras naturais e gargalos viários - ajudou a transformar a cidade em terreno fértil para a inovação. A rota do Fleury liga o bairro da Barra, no centro de Salvador, até a região de Stella Maris, próxima ao aeroporto. No trajeto de até 40 quilômetros, os drones transportam amostras biológicas coletadas em laboratórios parceiros do Fleury, que antes levavam até uma hora de carro para percorrer o mesmo caminho. Com o drone, a viagem caiu para poucos minutos.
"A saúde depende de tempo. Um resultado que sai mais rápido pode salvar vidas. E o drone nos trouxe um ganho significativo de eficiência", afirma Fernando Ramos, diretor do Lab-to-Lab Pardini do Grupo Fleury - a divisão presta serviços de análises clínicas para uma rede de laboratórios parceiros que atendem, juntos, cerca de 2,2 mil municípios no Brasil. Inicialmente, a operação transportava apenas materiais para testes toxicológicos e do pezinho, mas o serviço hoje já inclui o transporte de amostras líquidas, como sangue e urina, um avanço regulatório que ampliou o impacto da iniciativa.
O benefício não é apenas clínico. Ao substituir parcialmente o transporte terrestre, a empresa alega que a rota evita a emissão de cerca de 116kg de CO2 por mês - mais de 1,4 tonelada em um ano. A tecnologia também abre caminho para reduzir custos: embora cada voo isolado ainda seja mais caro do que um transporte rodoviário, o drone consegue realizar até 20 viagens no tempo em que um carro faria apenas quatro, diluindo os custos operacionais.
Nos bastidores
A operação de drones do Fleury em Salvador é fruto de uma parceria com a Speedbird Aero, primeira empresa brasileira a obter autorização da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) para voos além da linha de visada (BVLOS). "Nascemos com o propósito de usar drones para resolver gargalos logísticos. Salvador foi a primeira grande cidade a nos dar pontos de pouso e decolagem. Lá, hoje temos a maior rota urbana de drones do mundo", conta Manoel Coelho, CEO e cofundador da startup.
Segundo ele, todos os voos são pilotados remotamente, de maneira automática, a partir do centro de operações da empresa, localizado em Franca (SP). Técnicos locais cuidam da logística no embarque e desembarque, enquanto operadores remotos monitoram a aeronave. "É um modelo pensado para garantir segurança aeronáutica e eficiência logística", explica Coelho.
Poder público
Se, por um lado, o avanço da tecnologia impressiona, por outro, o papel do poder público é determinante, em uma soma de forças que envolve a ANAC, o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) e as prefeituras. Nesse cenário, Salvador foi pioneira: em fevereiro, a cidade homologou uma Política Municipal de Fomento ao Uso de Aeronaves Não Tripuladas, a primeira deste âmbito para o segmento no país.
"A camada municipal tem uma importância gigante. Em Salvador, a prefeitura foi fundamental para definir pontos seguros de pouso e criar condições para que a operação acontecesse. Sem esse apoio, nada disso seria viável", afirma Coelho, que destaca ainda que ANAC e DECEA têm avançado bastante recentemente. Entre os destaques, a agência lançou recentemente o regulamento RBAC 100, que adota uma metodologia de análise de risco inspirada em padrões europeus. O modelo permite flexibilizar operações a partir do tipo de risco envolvido - e não apenas da aeronave utilizada.
Essa articulação entre inovação privada e regulação pública está no coração do debate sobre cidades inteligentes. "Não existe cidade totalmente inteligente. Experiências como a de Salvador, porém, mostram que a transformação acontece quando há alinhamento entre governo e empresas", avalia Paula Faria.
Futuro
Se hoje os drones se concentram no transporte de amostras laboratoriais, medicamentos e cargas específicas, o horizonte aponta para operações mais diversas, de entregas de e-commerce a apoio em emergências médicas. A Speedbird já atua em 14 países e conduz testes com grandes varejistas, enquanto o Grupo Fleury estuda expandir suas rotas - hoje, além da rota em Salvador, a empresa já tem outra em funcionamento no município de Vespasiano (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte, conectando um laboratório a um centro de análises.
Mas ainda há obstáculos. Autonomia de voo, capacidade de carga e principalmente o avanço regulatório definirão a escala dessa revolução. Mesmo assim, o caminho está traçado. "Estamos falando de reduzir custos, tempo e emissões de poluentes em setores críticos como a saúde. Isso mostra que a mobilidade aérea não é só inovação: é impacto real no cotidiano das pessoas", resume Ramos, que ambiciona novas fronteiras para os próximos anos.
"Em cinco anos, seria muito transformador se conseguíssemos já operar os drones em áreas urbanas, e não apenas na orla", destaca o executivo do Fleury. "Além disso, a maior capacidade de autonomia das aeronaves poderia permitir uma menor dependência das companhias aéreas." Como diria Dorival Caymmi, por enquanto todo caminho deu no mar. Mas assim como o compositor baiano deixou Salvador, se mudou para o Rio de Janeiro e lá compôs históricos sambas cantados em todo o Brasil, a expectativa dos drones é ganhar os céus do País inteiro.