'Morango do amor ajuda a compreender IAs', diz especialista da Microsoft
Em entrevista ao 'Estadão', John Maeda, que será palestrante no Rio Innovation Week, falou sobre o futuro da IA e como a culinária ajuda a desmistificar a tecnologia
As mudanças rápidas e constantes no universo da inteligência artificial (IA) fazem com que entender cada novo modelo ou chatbot seja uma tarefa difícil. Mas e se fosse possível aprender esses aspectos em um programa de culinária tipo o da Ana Maria Braga? Essa é a ideia de John Maeda, especialista em IA e vice-presidente de design de IA da Microsoft que criou, junto com a empresa, um programa no YouTube para falar sobre o assunto. Maeda é um dos participantes do Rio Innovation Week (RIW), que começa nesta terça, 12, e que tem o Estadão como parceiro de mídia.
Nascido em Seattle, nos EUA, Maeda já liderou o MIT, guiou gigantes do Vale do Silício e agora traz ao palco do RIW uma palestra que une a comida com tecnologia - e que ensina que o morango do amor, sobremesa febre das redes sociais no Brasil, pode ser uma metáfora chave para entender como a IA funciona.
Em entrevista ao Estadão, Maeda antecipou alguns tópicos sobre como a relação entre humanos e máquinas está mudando com os avanços das IAs. Ele relacionou como tendências de consumo criadas nas redes sociais, como a febre do morango do amor, podem nos ajudar a entender a lógica por trás dos algoritmos dos chatbots. Leia a entrevista abaixo.
O que é o conceito de vida artificial?
A vida artificial é um campo que surgiu nos anos 1990. A ideia era que a vida artificial dos anos 1980 e, anteriormente, dos anos 1970, não estava se tornando algo verdadeiramente inteligente. Então, a vida artificial era um novo campo que emergiu a partir do pensamento de como o mundo físico funciona e como os organismos funcionam. Isso ajudou muito a formar o trabalho em robótica (que vemos) hoje. Nós conseguimos ver (essa aplicação) em robôs ou coisas do tipo se movendo, podendo ir de um lugar a outro, ou até mesmo o carro da Tesla, com piloto automático. Eles estão todos usando ideias da vida artificial e a ideia de que existe um ambiente. Nesse ambiente, há organismos e os organismos cooperam e trabalham juntos e são capazes de produzir um resultado. É assim que é a vida artificial. Eu não ouvi isso ser dito muitas vezes nos últimos anos, mas acho que a inteligência artificial (IA) voltou com tudo (nesse tema).
Como a IA pode mudar a maneira como interagimos com máquinas? O quanto isso pode avançar?
Temos que lembrar que, no passado, os programadores usavam algo chamado interface de linha de comando. O que aconteceu é que a interface gráfica do usuário foi construída em torno disso. Por exemplo, o clique e arrasta do mouse que removeu a interface de linha de comando. Ele removeu falar com a máquina em palavras. Nós voltamos a falar com palavras, mas não as palavras do computador, nossas palavras. E isso levou a uma revolução em uma coisa importante. Hoje, você pode apenas pedir ao computador 'Eu quero fazer X' e ele é capaz de entender a sua intenção, até certo ponto, e simplesmente faz. Você não precisa clicar, arrastar ou mesmo digitar.
Até onde isso vai? Acho que depende de qual geração. Acho que a geração mais jovem é muito capaz de trabalhar da nova maneira. A geração mais velha muitas vezes tem dificuldade de adaptação. Então, acho que veremos a geração mais jovem abraçar essa maneira diferente de trabalhar e encontrar algum equilíbrio. É sempre sobre o modo antigo e o novo modo. Para a geração mais velha, vai ser muito mais difícil. Então, eu digo a todos que são da minha idade e mais velhos, vocês têm que continuar aprendendo.
O sr. afirmou que o futuro do design está migrando de UX para AX — mas o que isso representa, na prática, para designers e usuários?
Isso significa que os designers não estarão projetando apenas para pessoas. Eles estarão projetando para IA. Em vez de projetar coisas em que você aponta e clica e arrasta, você vai trabalhar na maneira real de como pensar em usar uma ferramenta. Menos sobre o visual, mais sobre o funcional. Um exemplo que gosto de usar é o modo de colocar um prego na parede (para pendurar um quadro). Você poderia usar uma pedra, mas uma pedra não é tão boa (para isso). Um martelo é melhor porque você tem alavancagem. Você projeta uma ferramenta. Mas você tem que se perguntar: qual é o objetivo? Se o objetivo é colocar um quadro na parede, esse é o objetivo, não o martelo. E então, os designers no passado projetaram martelos. Designers no futuro projetarão maneiras que uma IA pode colocar um quadro inteiro ou basicamente entender o que o usuário quer e concluir o trabalho.
Qual é a sua maior decepção com a IA até aqui?
Acho que minha maior decepção é que não estamos aprendendo como essa IA funciona. Essa IA funciona de uma maneira muito simples. Pense nela como duas lâminas de uma tesoura. Essa é uma metáfora de alguém chamado Herbert Simon. Ele é um dos primeiros pioneiros da IA. Há duas lâminas de uma tesoura. Uma lâmina é o contexto, o ambiente, a situação. A outra lâmina é a cognição, a chamada inteligência, a capacidade de falar sem anotações. A combinação do contexto, estou falando com você sobre um assunto. Tenho isso em meu cérebro. E a cognição, sou capaz de juntar os dois e produzir palavras significativas. Esses dois juntos formam a maneira como os grandes modelos de linguagem operam. Você tem um modelo de contexto, o chamado modelo incorporado, e tem outro modelo chamado modelo de conclusão de bate-papo. Esses dois modelos cooperam. Então, acho que minha maior decepção é que tem sido difícil para as pessoas desacelerarem e entenderem isso.
'AI Slop' é algo que te incomoda?
O problema é que criamos palavras para descrever os problemas, em vez de ensinar por que eles acontecem. O que é AI slop? AI slop é um exemplo do que os próprios humanos podem acabar fazendo. Digamos que eu lhe dei um livro que eu escrevi e você disse: "Ah, esse livro é muito bom. Eu vou fazer a mesma coisa que o John". Então, vou pegar todas as anotações do John e vou apenas reescrevê-lo um pouco e vou fazer um novo livro. Se várias pessoas fazem a mesma coisa, você pode imaginar que, na vigésima pessoa que está escrevendo um livro sobre um livro que eu escrevi, que é traduzido e repassado, cada vez fica um pouco pior. Essa é uma maneira de pensar sobre a má qualidade da IA: em qualquer tipo de atividade criativa, você precisa ter fontes diversas para produzir um bom trabalho. E quando você tem modelos de IA se alimentando dos próprios dados que eles criam, eles vão criar o mesmo tipo de problema que nós criamos quando simplesmente copiamos uma pessoa que copiou outra pessoa.
Suas ideias do livro 'The Laws of Simplicity' continuam relevantes hoje? Como aplicar esse princípio em um contexto de IA?
Escrevi esse livro há 20 anos, em 2005. Muitas das ideias já não se aplicam, porque aquela era uma época em que a tecnologia estava apenas surgindo. A nuvem estava surgindo e, de repente, tudo se tornou complexo. Uma dessas chaves é a chamada "afastar". Uma maneira de tornar algo mais simples é afastar a complexidade de nós, para muito longe. Naquela época, falava-se da nuvem. Esses novos grandes modelos de linguagem e esses modelos de imagem, os chamados modelos de difusão, todos funcionam na nuvem. É necessário um processamento incrível para fazer essas coisas. Então, estamos obtendo uma experiência de usuário muito mais simples. Podemos usar agentes na experiência porque toda essa complexidade está na nuvem, por exemplo. No entanto, isso está mudando porque esses modelos agora estão sendo otimizados para rodar em nossos celulares, laptops e coisas do tipo. Então, isso vai mudar. Portanto, a complexidade dos grandes modelos de linguagem está ficando cada vez mais simples.
O DeepSeek mostrou que as gigantes do Vale do Silício desperdiçaram dinheiro na corrida da IA?
De forma alguma. Porque essa nova revolução não teria acontecido se não fossem todos esses investimentos nesse tipo de modelo básico pré-treinado. Se isso não tivesse acontecido, não haveria o DeepSeek. A questão, porém, é como a inovação acontece e se haverá inovação no chamado código fechado e também no código aberto. A computação de código aberto impulsiona muitas coisas, seu laptop tem. Seu telefone tem. Código aberto é um software que as pessoas criam abertamente. E então há sistemas de software de código fechado, menos transparentes, e ambos existem e muitas vezes coexistem. Portanto, se há algo que o DeepSeek nos ensina é a não esquecer que a inovação de código aberto está bastante viva hoje em dia.
O que mais te preocupa — e o que te anima — nos próximos anos do design e da tecnologia?
O que mais me preocupa nesta era é que não há educação suficiente sobre como entender a IA. É por isso que tenho uma série no YouTube chamada Mr. Maeda Cozy AI Kitchen, onde preparo programação de IA todas as semanas e tento ajudar mais pessoas a entender os conceitos e a ter menos medo dela.
O que me entusiasma? Bem, estou ficando mais velho e, à medida que envelheço, minha memória não está melhorando. Então, peguei, por exemplo, 30 anos dos meus escritos e os coloquei em um banco de dados vetorial com um grande modelo de linguagem e posso fazer perguntas ao meu eu do passado e realmente me ajudar a pensar como eu pensava em 2005, quando escrevi "Laws of Simplicity". Eu era uma pessoa muito diferente. Dizem que nós, seres humanos, renovamos nossas células o tempo todo, então, a cada ano, somos um ser humano totalmente novo. Gosto de lembrar como eu era antes e não consigo me lembrar. Então, acho emocionante poder usar diferentes versões do meu pensamento hoje, em 2025.
A profissão de gerente de produtos está morta com a IA?
De forma alguma. Não acho que nenhuma função esteja morta. Acho que todas as funções participam na criação de algum tipo de produto. O importante é lembrar que a palavra "gerente" inclui a ideia de responsabilidade. Portanto, enquanto houver responsabilidade na criação de produtos, você precisará de um gerente de produto. Enquanto houver responsabilidade no código que está por trás do sistema, você precisará de engenheiros. Portanto, a responsabilidade é algo que os seres humanos inevitavelmente precisam ter, e isso é bom.
A IA pode ampliar as desigualdades econômicas no mundo? Como?
Acho que a IA pode fazer uma grande diferença na melhoria real da igualdade econômica global, no sentido da educação. Acho que esses sistemas são extremamente bons, extremamente pacientes, extremamente inteligentes, por assim dizer, na capacidade de reunir informações novas de boas fontes para me ajudar a aprender. Se você pensar na sua pesquisa no Google ou no Bing ou em qualquer buscador em que possa encontrar algum tipo de informação, isso te torna mais inteligente. Esse é um tipo diferente de tecnologia de pesquisa que ajuda a explicar as coisas. Então, acho que essa tecnologia de aprendizagem está agora disponível para qualquer pessoa melhorar seu desempenho, e isso é uma grande oportunidade, porque a aprendizagem impulsiona oportunidades econômicas. Acredito firmemente nisso.
O sr. vai dar uma palestra sobre cozinha, criatividade e IA. Como esses elementos podem nos ensinar sobre tecnologia?
Bem, quando essa revolução da IA começou, comecei a pensar em como ensinar as pessoas sobre como ela funciona, não apenas falar. Então, eu estava com um amigo na Microsoft e criamos um programa chamado Mr. Maeda's Cozy AI Kitchen, no qual eu coloco um avental com a palavra IA e escrevo códigos ou convido pessoas e cozinhamos juntos. Escrevemos programas juntos e usamos metáforas culinárias para entender essa IA e não ter medo dela.
A coisa mais importante que acho que temos como oportunidade como seres humanos nesta era da IA é que não se trata da IA alucinando. Trata-se de nós, humanos, alucinando sobre o que ela pode fazer versus o que ela não pode fazer. E a melhor maneira de descobrir isso é cozinhar, provar, experimentar e, o mais importante, controlar nosso próprio conhecimento sobre o que ela é e o que ela pode ser.
O sr. já ouviu falar sobre uma receita que se tornou muito famosa no TikTok chamada "morango do amor"? Esse tipo de receita pode ensinar algo sobre criatividade e tecnologia?
Acho que você poderia usar a analogia da culinária para entender bem a IA. Vamos tentar isso. Primeiro, você precisa ser um chef. Um chef aprendeu a cozinhar. Ele tem várias habilidades que foi treinado para usar. Isso é como um modelo básico pré-treinado. Ele passou por um treinamento e é capaz de fazer coisas. Ele pode fazer essa receita especial de morango? Bem, se ele assistiu a um vídeo ou se leu uma receita, então ele poderia fazer isso. Mas se ele não tivesse nenhum conhecimento sobre isso, ele simplesmente alucinaria. Essa é a natureza dos modelos de IA. Eles podem fazer coisas.
Agora, se ele tem o contexto de como fazer, isso é um começo. O que essa receita precisa? Morangos. Qual será a versão mais deliciosa disso? Se forem usados bons morangos. Então, você tem que selecioná-los cuidadosamente. Isso é chamado de engenharia de contexto. Então, você tem o conhecimento do chef, que é o grande modelo de linguagem. Você tem a receita, que é o contexto adicionado. Você tem os morangos, que são o contexto mais importante. Você tem que escolher os certos. E então você executa a receita. Você faz o que é chamado de cognição de conclusão. O modelo pega o contexto e conclui. A frase conclui a execução. Essa é a ideia básica subjacente a toda a revolução da inteligência artificial. E espero que, no final, o sabor seja tão bom quanto tudo o que vi no Instagram.