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Conheça a Neurotech, startup de Pernambuco alvo de negócio bilionário da B3

Especializada em IA, empresa teve origem na Universidade Federal de Pernambuco

18 jan 2023 - 05h10
(atualizado às 13h17)
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ESPECIAL PARA O ESTADÃO - Analisar uma base de milhões de dados para decidir a quem conceder crédito na velocidade e no volume em que é feito hoje seria um trabalho homérico para um ser humano. Para um robô, é um processo automático e possível de ser realizado incontáveis vezes por dia. A adoção dessa tecnologia no Brasil começou no início do milênio, quando um grupo de mestres e doutores do Recife desenvolveu uma solução em inteligência artificial (IA) que revolucionaria o mercado de crédito. De dentro da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a pesquisa aplicada se transformou em inovação e culminou na startup Neurotech, que, duas décadas e novas tecnologias depois, está sendo adquirida pela B3 por uma cifra bilionária.

Os pesquisadores responsáveis pela Neurotech foram os primeiros a aplicar a tecnologia então recente de redes neurais artificiais para fazer análise de risco e controlar a taxa de inadimplência de clientes, substituindo o modelo estatístico clássico. E por que a bolsa de valores brasileira está interessada em uma empresa que nasceu originalmente para resolver o problema de uma operadora de cartão de crédito? A resposta está nos dados. A compra vem na esteira de investimentos que a B3 tem empreendido em big data. E esse se tornou o carro-chefe da Neurotech.

Tanto é que, atualmente, o escopo de atuação não se restringe mais apenas ao setor financeiro. Os bancos, fintechs e agências de crédito continuam representando a maior parcela dos mais de 150 clientes do grupo, mas as soluções de tecnologia foram adaptadas para atender também empresas de outros segmentos, como seguros, saúde e educação. "A Neurotech se tornou um hub de soluções de serviços de dados", define o sócio-fundador Germano Vasconcelos.

Uma dessas soluções é o Riskpack, que foi estruturado em 2013 e deu gás para que a empresa ampliasse sua participação no mercado. A Neurotech condensa um volume gigantesco de informações - internas e de fontes públicas - por meio de redes neurais dentro de uma plataforma que, treinada por algoritmos, aponta caminhos para tomadas de decisões mais precisas, de acordo com as políticas da empresa cliente. Algumas das respostas que a inteligência artificial tenta identificar, por exemplo, é se uma pessoa deve ser uma boa pagadora ou mesmo se tende a cometer uma fraude.

"A IA faz análise de milhões de pessoas, de forma tranquila em termos de performance e de tempo de resposta, e ainda consegue juntar mais informações e tirar mais insights inteligentes que um modelo estatístico ou um humano faria", diz o diretor de Tecnologia da Neurotech, Adrian Arnaud.

A quantidade de dados processados é tão grande que virou um produto por si só. O Neurolake é a plataforma de big data e inteligência artificial da Neurotech que processa mais de 1 bilhão de atualizações de dados por mês e mais de 15 mil informações com potencial de uso para negócios - a que chamam de variáveis. A ferramenta auxilia na construção de modelos preditivos para a criação de soluções em Machine Learning as a Service (do inglês, aprendizado de máquina como serviço).

Ou seja, as redes neurais não são a única técnica de IA de que a Neurotech faz uso, aponta o CEO Domingos Monteiro. "Cada vez que uma tecnologia nova se provar melhor que a antiga, a gente vai trazê-la para analisar os dados e fazer com que nossos clientes continuem a tomar as melhores decisões e não corram o risco de deixarem de ser relevantes ou deixarem de existir", afirma.

Por isso que, para o executivo, a técnica usada para a análise de dados não é o maior destaque da empresa - mas a própria análise de dados em si. "A Neurotech tem tecnologia relevante porque a gente começou a falar em inteligência artificial 20 anos antes de todo mundo. É como se fosse nossa lingua mater. Mas o grande diferencial não é só o domínio dessa tecnologia, é ter entendido que os negócios não serão relevantes se não conseguirem usar dados de forma adequada. E a gente sabe usar tecnologia, juntando esses dados e ajudando as empresas a tomarem melhores decisões", diz o CEO.

Da academia para o mercado, de startup para scale-up

A Neurotech é um exemplo de empresa que surge da academia para atender a uma demanda do mercado. Lá na virada do século, os cientistas do Centro de Informática (CIn) da UFPE foram procurados pela operadora Hipercard, que queria saber se seria possível usar inteligência artificial para fazer uma análise de crédito mais eficiente. A busca foi no lugar certo, já que o CIn, àquela época, já tinha uma forte tradição em IA: foi um dos primeiros departamentos de uma universidade brasileira a ensinar o assunto.

A partir dali, os mestres e doutores em ciência da computação, matemática e inteligência artificial passaram nove meses de trabalho desenvolvendo a pesquisa em redes neurais para chegarem à resposta que a Hipercard procurava. "O resultado foi muito bom em termos de desempenho. A gente mostrou que era possível aumentar em 40% a carteira de clientes mantendo o mesmo risco de inadimplência", conta Germano Vasconcelos.

Mesmo assim, a proposta foi - acredite - rejeitada pela administradora de crédito. Não demorou muito, no entanto, para que o grupo de pesquisadores (que a essa altura já tinha formado uma unidade de negócios na incubadora Cesar, na UFPE) estivesse fechando negócio com outros parceiros. "No dia seguinte ao 'Não' da Hipercard, a gente recebeu o 'Sim' de uma empresa de varejo do Pará", conta o CEO, recordando a parceria com o grupo Líder Magazan. "A partir daí, a Neurotech se desenvolveu como empresa realmente e não mais como um grupo de consultores."

Os co-fundadores viajaram pelo Brasil apresentando o produto a possíveis clientes e viabilizando o negócio com um recurso inicial de R$ 40 mil do Cesar e, depois, se financiando com programas de governo de incentivo à inovação.

"No começo, a empresa recebeu muito subsídio do governo", relembra Adrian Arnaud. "Acho que a gente pode dizer que a empresa só existe hoje porque lá no início a gente teve tudo aquilo de apoio, que pode parecer pequeno quando a gente olha para trás, mas naquela hora imenso", avalia.

Em 2013, a startup recebeu novo aporte (cujo valor não foi divulgado) com a entrada da gestora de fundos TMG Capital como investidora. "Foi um grande aporte e, na verdade, uma grande confirmação para todos nós como sócios de que de fato estávamos no caminho certo", afirma Arnaud. Essa foi uma das etapas do pavimento da evolução da Neurotech de startup para scale-up, uma empresa de alto crescimento.

Hoje, a Neurotech é uma das companhias embarcadas na aceleradora Porto Digital, no Recife, polo de inovação no Brasil. A empresa tem mais de 150 clientes, mais de 320 funcionários e expectativa de geração de receita líquida de R$ 120 a 150 milhões para 2023.

A aquisição pela B3 foi anunciada no último 9 de novembro, menos de um ano depois da compra da Neoway, outra empresa especializada em big data e analytics. A ideia da Companhia é transformar dados em soluções e produtos com que se possa "efetivamente ganhar dinheiro e resolver problemas de clientes", disse o presidente da B3, Gilson Finkelsztain, durante o B3 Day, evento anual com acionistas.

"A gente entende que tem oportunidade de monetização dessas informações, seja através de venda de dados por API ou trabalhos por API, plataforma como serviço, ou de solução, resolvendo algum problema dos clientes", declarou, na ocasião.

A transação foi aprovada pela assembleia de acionistas no último dia 12, mas ainda precisa ter o sinal positivo do (Cade) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para seguir em frente.

Caso tenha o aval das instituições, a B3 pagará, no fechamento da operação, o valor de aquisição previsto em R$ 620 milhões. Fora isso, se comprometeu com o pagamento futuro de aproximadamente R$ 523 milhões em earn-outs, a depender de se as metas de desempenho forem atingidas.

O Fato Relevante divulgado pela Companhia afirma que o preço final da operação "estará sujeito a ajustes comuns em transações dessa natureza", mas as quantias previstas neste início somam R$ 1,19 bilhão.

Pouca coisa pode ser dita sobre a transição por a operação ainda estar em fase de aprovação e as informações serem consideradas privilegiadas. O que os sócios da Neurotech adiantaram é que, "a princípio, nada muda" em relação à estrutura da empresa.

Como uma startup chega a esse resultado?

Como os empreendedores transformaram R$ 40 mil no preço potencial de R$ 1 bilhão? O principal fator que favoreceu o rápido crescimento da empresa, na visão dos sócios, não foi a tecnologia. O sucesso obtido reside mais na capacidade de ter reinventado seus produtos e modelo de negócio ao longo dos anos, sem perder de vista as transformações de mercado.

"A Neurotech de 2000 não tem nada a ver com a Neurotech de 2020. Houve várias revoluções de plataforma tecnológica ao longo da história, mas teve ainda uma evolução no modelo de negócio. A Neurotech vendia uma tecnologia e hoje vende resultado: o aumento na performance do negócio do cliente por tomar melhor decisão", detalha Domingos Monteiro.

Fundadores da Neurotech em meados dos anos 2000.
Fundadores da Neurotech em meados dos anos 2000.
Foto: Divulgação/Neurotech / Estadão

E o que dizem os especialistas em aceleração de negócios?

Uma outra característica presente na Neurotech que não passa despercebida pelos especialistas na hora de apontar fatores de sucesso é o nível de especialização e especificidade da solução desenvolvida.

Pedro Carneiro, sócio e diretor de Investimentos da ACE, holding de inovação de negócios, afirma que a Neurotech construiu em duas décadas um grupo de ativos que é um diferencial que ninguém mais tem. "Eles passaram esses 20 anos colhendo dados, aperfeiçoando o algoritmo de machine learning, aplicando isso em vários cenários diferentes, e agora estão batendo de frente com com SPC Serasa e outros grupos grandes de avaliação de crédito", avalia o executivo, que esteve em contato com a Neurotech em dois projetos de inovação aberta promovidos pela aceleradora. "O que isso traz de aprendizado para os nossos empreendedores é: foco. Achar um diferencial competitivo e trabalhar com foco em cima dele é o que faz o seu negócio ir além dos demais."

Ele também destaca a habilidade da empresa em expandir o negócio para além da sua proposta inicial. "Acho que isso é uma das coisas que a B3 comprou na prática. A Neurotech tem um ativo, que são os dados, e um outro ativo, que é a capacidade de aprender e construir rápido", afirma Pedro Carneiro.

O presidente do Porto Digital, Pierre Lucena, também faz essa associação. "Esse potencial de crescimento da Neurotech, ainda mais agora, foi construído porque é uma empresa que nasce muito sofisticada, para resolver problemas muito complexos", avalia.

A complexidade e a maturidade dos sócios seriam o fio em comum que une a Neurotech e outras startups que têm apresentado bom desempenho. De Pernambuco e incubadas no Porto Digital, Pierre Lucena cita a Tempest, especializada em cybersegurança e comprada pela Embraer; a Insole, fintech de soluções financeiras para o setor de energia; a On Case, também de IA; e a Kurier, voltada para inteligência jurídica.

As dicas que o especialista dá para empreendedores que querem alcançar esses resultados são: mirar em soluções especializadas para problemas complexos, se ligar a ambientes de inovação para firmar parcerias e pensar em formas de o negócio escalar. "Não pode pensar que vai resolver um problema de mercado local, entende? Tem que pensar na possibilidade real de escalar esse produto."

Para favorecer o surgimento de empresas com esse perfil, complementa, deve haver a formação de empreendedores e técnicos de valor agregado e fomento ao capital empreendedor - com o qual a Neurotech contou no início dos anos 2000 e que, na análise de Pierre Lucena, está em falta atualmente.

"Hoje você precisa esperar o mercado chegar, mas, no começo da cadeia simplesmente, não há recurso", critica. "Vai ser preciso restabelecer as fontes de financiamento [governamental], que sumiram completamente. Desde 2016, não tem dinheiro nenhum. E já deu para sentir no mercado: basta ver que não surgiu nenhum unicórnio novo na pandemia. É um reflexo do médio prazo."

Estadão
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