'Fui escravizada pela família do meu marido': os abusos sofridos por milhões de mulheres submetidas a casamentos forçados

Os dados mais recentes da OIT indicam que, em 2021, havia mais de 22 milhões de pessoas em casamentos forçados. Mas as organizações especializadas neste tema afirmam que a incidência real provavelmente é muito maior.

21 dez 2025 - 14h42
Sara (nome fictício) sofreu abuso do marido e da sogra, após um casamento forçado no Paquistão
Sara (nome fictício) sofreu abuso do marido e da sogra, após um casamento forçado no Paquistão
Foto: BBC News Brasil

Isolada e sozinha, Sara conta que se sentiu indefesa quando o marido com quem foi obrigada a se casar no Paquistão se tornou abusivo. Ela tinha 21 anos.

"Ele costumava acender um isqueiro no meu rosto para me assustar e dizia: 'Vou queimar você'", relembra ela.

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Sara afirma que o comportamento controlador do marido se agravou quando ela foi levada para o Reino Unido e se mudou com os sogros em 2022.

No lugar da vida matrimonial feliz prometida pela família, seu marido a atacou e os sogros a obrigaram a trabalhar como escrava.

O casamento forçado ocorre quando uma ou as duas pessoas não oferecem seu consentimento e sofrem pressões ou abusos para se casar.

Um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2021 (o último ano com números publicados) concluiu que cerca de 22 milhões de pessoas fazem parte de um casamento forçado em todo o mundo.

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Na América Latina e no Caribe, uma a cada cinco mulheres contrai casamento ou união antes dos 18 anos. Na maioria das vezes, são uniões informais, sem registro oficial ou formalizado, segundo dados do Unicef de 2023.

Mas as organizações destacam que a verdadeira incidência dos matrimônios forçados, provavelmente, é muito maior do que indicam as estimativas.

No Reino Unido, o casamento forçado passou a ser ilegal em 2014, como parte da Lei de Conduta Antissocial, Delinquência e Vigilância Policial do país. Ele pode levar a uma pena de até sete anos de prisão.

Estatísticas do Serviço de Promotoria da Inglaterra e do País de Gales indicam que, no ano passado, houve 30 processos legais por este delito, resultando em 16 condenações.

Mas organizações beneficentes, como a Karma Nirvana, que ajuda mulheres afetadas por matrimônios forçados no Reino Unido, afirmam que a quantidade de processos não reflete o real número de vítimas.

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A Karma Nirvana é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em Derby, na Inglaterra. Ela afirma ter recebido 624 ligações na sua linha de ajuda em 2024.

Este número representa quase o triplo das 229 chamadas registradas pela Unidade de Casamentos Forçados do Ministério do Interior britânico.

'Você vai ser violentada'

A BBC alterou o nome de Sara para proteger sua identidade. E também não irá revelar o local do Reino Unido para onde ela foi levada.

Aquela foi a primeira vez em que Sara esteve na Inglaterra. Ela não falava inglês e sabia muito pouco sobre o país.

Ela recorda que familiares e amigos a tranquilizaram, dizendo que ela teria uma "vida melhor". E, por algumas semanas, o casamento realmente havia melhorado.

"Mas, pouco a pouco, começaram as restrições: 'Não saia de casa, não faça isso, não faça aquilo, não trabalhe, fique só em casa'", relembra Sara.

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Ela destaca ter ouvido que seria violentada ou assassinada pelos britânicos, se abandonasse o lar conjugal algum dia.

"Eles me disseram que, no Reino Unido, eu não podia sair de casa e, se saísse sozinha, seria violentada", ela conta. "'Não saia sozinha, nem de dia, nem de noite.'"

Sara afirma que sua situação se agravou quando seu marido se tornou violento
Foto: BBC News Brasil

Subitamente, Sara se viu vivendo uma vida de servidão, apesar da sua resistência.

Ela conta que sua sogra a obrigava a realizar as tarefas domésticas e não permitia que ela saísse de casa. Ela descrevia Sara como "criada" e "servente".

Sua situação se agravou quando seu marido se tornou fisicamente violento. "Às vezes, ele me atirava alguma coisa, me empurrava. Às vezes, me chutava", ela conta.

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'Ele me agarrou pelo pescoço'

A situação de Sara ficou ainda mais insuportável quando ela percebeu que seu marido e a família haviam desligado o wi-fi do seu telefone celular.

Assustada e sozinha, sem poder manter contato com seus amigos e familiares no Paquistão, ela conta que criou coragem para perguntar ao marido por que ela não tinha internet sem fio.

As consequências foram devastadoras. Ela relata que ele, furioso, atirou contra ela o controle remoto da televisão e as chaves, acertando no seu rosto.

"Ele me agarrou pelo pescoço. Me empurrou contra a parede. Me bateu três ou quatro vezes na cabeça", segundo ela.

Sara se sentiu asfixiada e pensou que fosse morrer. E também se lembra de como sua sogra, que presenciou tudo aquilo, insistia que ela deveria ter ficado calada.

"Naquela noite, meu marido dormiu perto da porta para que eu não fugisse", ela conta.

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Sara afirma que era tratada como empregada e que a família esperava que ela cozinhasse e fizesse as tarefas domésticas
Foto: BBC News Brasil

Sara relembra como ficou apavorada após o ataque que, segundo ela, a deixou com o rosto inchado.

"Não sei o que fiz, como fiz, mas, às seis horas da manhã, depois de passar toda a noite pensando e chorando, liguei para a polícia", ela conta.

Cinco minutos depois, Sara ouviu os policiais baterem à porta. Ela relembra que um deles subiu pelas escadas, entrou no seu quarto e a encontrou encolhida em um canto.

"Quando ele chegou e me viu, eu tremia muito", ela conta. "Tinha frio, o coração batia muito rápido e a minha pressão arterial caiu."

A polícia a retirou de casa e a levou para um abrigo em Leeds, no norte da Inglaterra. Tudo ocorreu em dezembro de 2022.

O marido de Sara foi preso, mas ela afirma que não quis tomar nenhuma medida por preocupação com a segurança da sua família no Paquistão. Por isso, ele não foi acusado de nenhum delito.

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A preocupação de Sara era ser obrigada a se casar de novo, se voltasse para o Paquistão
Foto: BBC News Brasil

Por fim, em julho do ano passado, Sara se divorciou do seu marido abusivo.

Ela conta que não quis voltar ao Paquistão porque, segundo ela, as mulheres divorciadas são estigmatizadas no país. E sua preocupação era ser obrigada a contrair outro matrimônio.

"O que acontece com os familiares é que, de uma forma ou de outra, eles fazem você se casar de novo", explica ela.

Agora, Sara tem residência permanente no Reino Unido. Ela está aprendendo inglês e reconstruindo sua vida em Derbyshire, na região central da Inglaterra.

Sara incentiva as pessoas envolvidas em casamentos forçados a sair deles.

"Quando você tem um casamento forçado, você está arruinando a vida da outra pessoa", afirma ela. "Não é só a vida da mulher que é arruinada, a dos homens também. Primeiro, deveríamos refletir sobre isso, observar e compreender."

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A professora Helen McCabe faz parte de uma equipe que trabalha com o Ministério do Interior para criar uma ferramenta para avaliar o casamento forçado
Foto: BBC News Brasil

Sara é uma das muitas vítimas de casamentos forçados que moram no Reino Unido. Atualmente, não existem números confiáveis de quantas pessoas são afetadas.

Para mudar esta situação, o Ministério do Interior britânico anunciou que irá conduzir um estudo para avaliar a frequência de casamentos forçados no país e combater casos de violência em que mulheres sofrem abuso porque supostamente mancharam a "honra" da família.

O Ministério trabalha em conjunto com uma equipe de professores das universidades britânicas de Nottingham e Birmingham, para criar uma ferramenta de dados que permita realizar este processo.

"Recomendamos ao governo que é preciso ter dados atualizados", explica a professora Helen McCabe, especializada em teoria política da Universidade de Nottingham.

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McCabe afirma que este será o primeiro estudo de prevalência deste tipo na Inglaterra e no País de Gales e poderá ajudar a determinar quantas pessoas são afetadas, se os casamentos forçados estão aumentando e como as políticas poderiam ser modificadas para ajudar na sua redução.

"Se não soubermos quantas pessoas são afetadas, nem tivermos dados de referência sobre quantas pessoas estão envolvidas, não poderemos determinar se a polícia, a Promotoria da Inglaterra e do País de Gales ou qualquer outra entidade deveria alterar suas práticas", conclui a professora.

A estimativa é que o estudo seja concluído em março.

Em um comunicado, a ministra de Proteção e Violência contra as Mulheres e Meninas, Jess Phillips, declarou que "este governo está introduzindo mudanças nas leis e outras medidas para abordar esta forma debilitadora de abuso e estabelecer orientações claras para o pessoal de primeira linha. Eles devem tratar estes delitos com a seriedade que merecem."

"Minha mensagem para quem comete estes delitos é simples: nós os levaremos à Justiça."

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