Como uma mala antiga revelou uma fortuna familiar perdida sob o nazismo

O conteúdo da mala de seu falecido pai levou Antony Easton a desvendar uma história de riqueza e tragédia.

22 dez 2025 - 17h32
O conteúdo da mala de seu falecido pai levou Antony Easton a desvendar uma história de riqueza e tragédia
O conteúdo da mala de seu falecido pai levou Antony Easton a desvendar uma história de riqueza e tragédia
Foto: BBC News Brasil

Tudo começou com uma mala escondida debaixo da cama.

O ano era 2009 e o pai de Antony Easton, Peter, havia falecido recentemente.

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Ao começar a lidar com os trâmites burocráticos do inventário, Antony encontrou uma pequena mala de couro marrom no antigo apartamento de seu pai, na cidade de Lymington, em Hampshire, na costa sul da Inglaterra.

Dentro dela, havia notas de banco alemãs impecáveis, álbuns de fotos, envelopes cheios de anotações registrando diferentes capítulos de sua vida e uma certidão de nascimento.

Peter Roderick Easton, que se orgulhara de ser inglês (e anglicano), na verdade nasceu e cresceu na Alemanha pré-guerra como Peter Hans Rudolf Eisner, membro de uma das famílias judias mais ricas de Berlim.

A mala que guardava os segredos do pai de Antony
Foto: Charlie Northcott/BBC / BBC News Brasil

Apesar das pistas sobre as origens do pai durante sua infância, o conteúdo da mala lançou luz sobre um passado do qual Antony quase nada sabia.

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As revelações o levariam a uma jornada de uma década, revelando uma família devastada pelo Holocausto, uma fortuna desaparecida de bilhões de libras e um legado de obras de arte e propriedades roubadas sob o regime nazista.

Fotografias em preto e branco revelaram um pouco da infância de Peter, bem diferente da criação modesta de seu filho em Londres — mostravam uma Mercedes com motorista, mansões com empregados e escadarias ricamente esculpidas com anjos.

De forma ainda mais sinistra, uma das fotos mostrava Peter Eisner, aos 12 anos, sorrindo com amigos, com uma bandeira nazista tremulando ao longe.

O pai de Antony, Peter (ao centro), aos 12 anos
Foto: Antony Easton / BBC News Brasil

"Tive a sensação de que era uma mão estendida do passado", diz Antony.

Ele diz que seu pai era um homem quieto e sério, embora propenso a acessos de raiva. Ele evitava falar sobre sua infância e sempre se esquivava de perguntas sobre seu leve sotaque alemão.

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"Havia indícios de que [ele não era] realmente como as outras pessoas... Havia uma aura sombria em seu mundo", diz Antony.

Uma imensa fortuna

A próxima grande pista sobre a história da família de Antony veio de uma obra de arte.

Com a ajuda de uma amiga que falava alemão fluentemente, ele pediu que ela investigasse uma empresa chamada Hahn'sche Werke, cujas referências estavam espalhadas pelos documentos na mala.

Depois de pesquisar online, ela enviou a Antony a foto de uma pintura que retratava o interior de uma grande siderúrgica - aparentemente pertencente à empresa.

Metal fundido brilha em uma esteira rolante, iluminando os rostos de trabalhadores ocupados e atentos. É uma imagem de poder e força industrial, de uma época em que a Alemanha caminhava a passos largos para décadas de guerra devastadora.

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A pintura de 1910, do artista Hans Baluschek, chamava-se Eisenwalzwerk (Laminador de Ferro). Pertenceu a Heinrich Eisner, que provavelmente a encomendou.

Eisner ajudou a transformar a siderúrgica Hahn'sche Werke em uma das empresas mais tecnológicas e expansivas da Europa Central.

Os documentos na mala indicavam que se tratava do bisavô de Antony.

Mais pesquisas revelaram que, na virada do século 20, Heinrich era um dos empresários mais ricos da Alemanha - o equivalente a um multibilionário moderno.

Sua empresa fabricava aço tubular, com fábricas espalhadas pela Alemanha, Polônia e Rússia.

Heinrich e sua esposa, Olga, possuíam várias propriedades em Berlim e arredores, incluindo um impressionante prédio de seis andares no centro da cidade, com pisos de mármore e fachada branco-creme.

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Uma fotografia do início dos anos 1900 mostra um homem com uma barriga levemente arredondada e um bigode branco reto. Heinrich Ele veste um terno preto, e Olga senta-se ao lado dele, coroada com uma tiara de cristal.

Os bisavós de Antony, Olga e Heinrich Eisner, retratados no início dos anos 1900
Foto: Antony Easton / BBC News Brasil

Quando morreu em 1918, Heinrich deixou ações de sua empresa - e sua fortuna pessoal - para seu filho Rudolf, que havia retornado recentemente da Primeira Guerra Mundial.

A guerra foi uma catástrofe humana, mas a Hahn'sche Werke prosperou naquele período, atendendo à demanda do exército alemão por aço.

Rudolf e sua família também sobreviveram com sucesso ao caos econômico e político que assolou o país após a guerra.

No entanto, em poucos anos, tudo estaria perdido.

Tudo muda

Em anotações encontradas por Antony na mala, Peter se lembrava de ter ouvido conversas entre seus pais e sussurros sobre ameaças nazistas.

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Os judeus eram culpados por Adolf Hitler e seus apoiadores pela derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e pelas dificuldades econômicas que se seguiram.

Rudolf Eisner acreditava que estaria seguro se tornasse sua empresa indispensável para o regime nazista. Por um tempo, isso pareceu funcionar, mas à medida que as leis antissemitas se tornavam cada vez mais extremas e os abusos que testemunhavam ao seu redor pioravam, ele começou a reconsiderar.

Em março de 1938, o governo investigou a Hahn'sche Werke. Sob imensa pressão das autoridades, a empresa de propriedade judaica foi vendida a preço de banana para a Mannesmann, um conglomerado industrial cujo CEO, Wilhelm Zangen, era um simpatizante nazista.

Berlim, 1934: empresas de propriedade judaica, como esta loja de departamentos, foram alvo dos nazistas logo após sua ascensão ao poder
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"É quase impossível quantificar a riqueza roubada e quanto esses ativos valem hoje", diz David de Jong, autor do livro Bilionários Nazistas, que reconta o saque de empresas judaicas durante o Terceiro Reich.

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Em 2000, a Mannesmann foi adquirida pela Vodafone em um negócio avaliado em mais de 100 bilhões de libras (mais de R$ 736 bilhões) - a maior aquisição comercial registrada até então. Pelo menos uma parte dos ativos industriais incluídos nessa venda teria pertencido ao império empresarial de Eisner.

O desmantelamento da Hahn'sche Werke e a prisão de membros da empresa fizeram com que os Eisner percebessem que precisavam fugir.

Mas, em 1937, qualquer judeu que tentasse deixar a Alemanha era obrigado a entregar 92% de seus bens ao Estado, pagando uma série de taxas conhecidas como Reichsfluchtsteuer ou Imposto de Fuga do Reich.

Os Eisner corriam o risco de perder o que restava de sua riqueza.

O acordo

No auge dessa crise, um homem chamado Martin Hartig, economista e consultor tributário, segundo registros nos arquivos de Berlim, começou a ter grande influência na vida dos Eisner.

Ao longo da década de 1930, seu nome aparece repetidamente no livro de visitas da propriedade rural dos Eisner, agradecendo-lhes pela generosa hospitalidade.

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Hartig, que não era judeu, parece ter oferecido à família uma solução para o iminente confisco de seus bens pelos nazistas. Eles transferiram elementos-chave de sua fortuna pessoal para ele — principalmente as diversas propriedades que possuíam e seus conteúdos — protegendo-os, assim, das leis que visavam os judeus.

Os avós de Antony, Hildegarde e Rudolf Eisner
Foto: Antony Easton / BBC News Brasil

Antony acredita que seus avós presumiram que Hartig um dia devolveria os bens a eles.

Eles estavam enganados. Em vez disso, ele transferiu permanentemente os bens da família Eisner para o seu próprio nome.

A BBC encontrou cópias dos documentos originais da venda nos arquivos federais da Alemanha e as compartilhou com três especialistas independentes.

Os três concluíram que a transação era evidência de uma "venda forçada" — um termo amplamente utilizado para descrever a expropriação de bens judaicos sob o regime nazista.

Apesar de terem perdido a fortuna que construíram ao longo de gerações, os avós e o pai de Antony conseguiram escapar da Alemanha em 1938.

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Bilhetes de trem, etiquetas de bagagem e folhetos de hotéis preservados na mala de Peter permitiram a Antony retraçar sua jornada.

A família foi para a Checoslováquia e depois para a Polônia, escapando por pouco dos nazistas, antes de embarcar em um dos últimos navios com destino à Inglaterra, em julho de 1939.

A mala de Peter continha registros da fuga da família Eisner da Alemanha
Foto: Charlie Northcott/BBC / BBC News Brasil

Eles perderam o equivalente a bilhões, mas estavam entre os membros mais sortudos da família Eisner. A maioria de seus parentes foi presa e morta em campos de concentração.

O próprio Rudolf morreu em 1945, depois de ter passado a maior parte da guerra - como muitos outros refugiados alemães - internado pelos britânicos na Ilha de Man, uma pequena ilha no Mar da Irlanda, utilizada pelo Reino Unido como campo de internamento de estrangeiros considerados uma ameaça.

Encontrando os Hartigs

O próximo passo para Antony era descobrir o que havia acontecido com a fortuna da família Eisner e com Martin Hartig.

Ele contratou uma investigadora experiente, Yana Slavova, para descobrir exatamente o que havia sido roubado, como havia mudado de mãos e onde estava hoje.

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Em poucas semanas, Yana descobriu uma série de documentos sobre os parentes dele, incluindo detalhes sobre suas propriedades e bens.

Ela conseguiu rastrear a pintura que Antony havia descoberto no início de sua jornada. O quadro Eisenwalzwerk estava na coleção do Museu Brohan, em Berlim.

As primeiras tentativas de reaver a obra de arte esbarraram em problemas relacionados às provas.

Antony conseguiria provar que a venda estava ligada à perseguição nazista? Como ele sabia que a obra não havia mudado de mãos várias vezes legitimamente antes de chegar ao museu?

Um avanço ocorreu quando Yana descobriu correspondências entre o museu e um negociante de arte na época da venda.

O negociante de arte havia vendido a pintura de uma das antigas casas da família Eisner - uma propriedade herdada por Martin Hartig em 1938.

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Hartig viveu o resto da vida ali, restaurando meticulosamente o prédio após os danos sofridos durante a queda de Berlim, antes de falecer de causas naturais em 1965.

Após a morte de Hartig, a propriedade passou para sua filha, que agora estava na casa dos 80 anos. Ela doou a casa para seus próprios filhos em 2014 e se mudou para uma casa de campo, onde combinou de se encontrar com Antony e Yana.

A senhora idosa preparou chá e bolos para eles, que comeram na sala de estar sob um retrato de seu pai - um homem de óculos de aros grossos e cabelos oleosos, rosto magro e vestindo um terno preto.

O retrato havia sido pintado em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.

A filha de Martin Hartig tinha uma história bem diferente daquela que Antony e Yana esperavam.

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Ela contou que seu pai sempre se opôs aos nazistas e ajudou a salvar os Eisner, que ela descreveu como grandes amigos, do Holocausto.

Disse que ele os ajudou a se convencerem a fugir, insistindo: "Vocês não podem ficar aqui. Vão para a Grã-Bretanha, para Londres."

Seu pai também lhe contou que os ajudou a contrabandear quadros para fora da Alemanha, retirando-os das molduras e escondendo-os entre roupas.

Quando questionada sobre as propriedades que sua família herdou dos Eisner em 1938, ela afirmou que todas as compras foram legítimas.

"Meu pai comprou duas casas, legalmente", disse ela. "Tudo tinha que ser feito corretamente."

Um memorial no local do antigo campo de concentração de Theresienstadt homenageia as vítimas do Holocausto, incluindo membros da família Eisner
Foto: Antony Easton / BBC News Brasil

Outros membros da família se mostraram mais abertos à possibilidade de que seu ancestral possa ter explorado os Eisner.

Vincent, bisneto de Martin Hartig, está na casa dos 20 anos e em processo de formação para se tornar carpinteiro.

Ele admitiu sentir que sua casa, onde os avós de Antony moraram, pode ter um passado perturbador.

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"Quer dizer, é claro que em algum momento fiquei curioso - de onde vem o fato de nós, como família, morarmos neste lugar tão agradável?", disse ele. "Também me perguntei: quais foram as circunstâncias?"

Depois de descobrir o que aconteceu com a família judia de Antony, Vincent disse acreditar que os Eisner não tiveram muita escolha ao passar a propriedade para seu bisavô.

'Não é sobre dinheiro'

Antony não tem como entrar com um processo de restituição pela propriedade de seus avós.

Sua avó, Hildegard - viúva de Rudolf - tentou recuperá-la na década de 1950, mas desistiu após uma contestação judicial de Hartig.

O prazo de prescrição para que vítimas judias da perseguição nazista reivindiquem propriedades na antiga Alemanha Ocidental também já expirou.

Para as obras de arte tomadas da família Eisner, no entanto, ainda há esperança de recuperar o que foi perdido.

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No início deste ano, o Museu Brohan, em Berlim, informou Antony que pretendia devolver a pintura Eisenwalzwerk aos descendentes de Henrich Eisner.

O museu declinou um pedido de entrevista da BBC enquanto o processo segue em andamento.

Outra pintura foi devolvida a Antony pelo Museu de Israel em Jerusalém, e uma terceira reivindicação por uma obra de arte na Áustria também permanece pendente.

Entre as evidências que a investigação de Antony revelou está uma lista feita pela Gestapo, detalhando artefatos e pinturas específicos que foram apreendidos de seus parentes. Há uma chance de sua família encontrar e recuperar mais bens no futuro.

"Eu sempre disse sobre a restituição: não é sobre objetos, dinheiro e propriedades, mas sobre pessoas", diz Antony. Ao pesquisar o passado de sua família, ele recuperou informações detalhadas sobre quem foram seu pai e seus avós.

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"Todo esse processo os transformou em pessoas reais, que tiveram vidas reais."

A restituição 'não é sobre objetos... mas pessoas', diz Antony
Foto: Antony Easton / BBC News Brasil

Esse conhecimento foi agora transmitido para uma nova geração.

O nome Eisner pode ter desaparecido quando Peter navegou para a Grã-Bretanha em 1939, mas agora vive novamente. O sobrinho-neto de Antony, Caspian, nascido em agosto de 2024, recebeu o nome do meio Eisner.

Antony diz que ficou profundamente comovido com a decisão de sua sobrinha de homenagear sua família há muito perdida.

"Enquanto Caspian estiver por aí, esse nome estará com ele", diz ele.

"As pessoas dirão: 'que nome do meio interessante - qual é a história por trás disso?'"

Escute o podcast The House At Number 48 na BBC Sounds (em inglês)

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