Devo, não nego, pago com o meu escravo - Como pessoas escravizadas viravam garantia de crédito

Como pessoas escravizadas viraram garantia de crédito no Brasil.

29 dez 2025 - 09h27
(atualizado às 09h48)
Fragmento de lista de proprietários de escravos da fregesia de Itapecerica, em 1850. Autor desconhecido.
Fragmento de lista de proprietários de escravos da fregesia de Itapecerica, em 1850. Autor desconhecido.
Foto: The Conversation

Uma questão antiga permanece relevante: por que a escravidão se expandiu e persistiu em sociedades coloniais do Atlântico? Por que durou décadas, mesmo diante de alternativas e transformações econômicas?

A resposta comum é simples: a escravidão persistiu porque era lucrativa. Mas aqui está a pergunta mais importante: lucrativa para quem e por quais mecanismos?

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Parte da resposta vai além do trabalho forçado. A escravidão foi um sistema de produção e coerção, mas também operou como infraestrutura financeira.

Garantia ampliou o crédito e sustentou investimentos

Em economias escravistas a possibilidade de transformar pessoas em propriedade juridicamente reconhecida gerou um tipo específico de garantia. Essa garantia ampliou o crédito e sustentou investimentos.

Em pesquisa recente, eu e meu colega Erik Green comparamos o Brasil, Estados Unidos e a Colônia do Cabo, atual África do Sul. A comparação aponta uma regularidade: em diferentes economias coloniais, pessoas escravizadas foram usadas como garantia em operações de crédito.

Nos Estados Unidos, fazendeiros hipotecavam pessoas escravizadas para financiar expansão territorial e compra de equipamentos. Na Louisiana e Virgínia, mais de 40% das hipotecas após a independência envolviam garantia humana.

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Na Colônia do Cabo, o primeiro registro é de 1731: um fazendeiro hipotecou pessoas escravizadas junto à Igreja Reformada Holandesa. A prática se generalizou: no século XIX, pessoas escravizadas eram o principal ativo hipotecável da colônia.

Pessoas concentravam mais valor que qualquer outro ativo

No Brasil, o mecanismo aparece com nitidez pela escassez de liquidez. No Nordeste, a terra agrícola valia cerca de um décimo do preço de uma pessoa escravizada. Pessoas concentravam mais valor que qualquer outro ativo e, por isso, viraram a base para garantias.

Mas valor não basta. Para o credor, o essencial é poder tomar e vender a garantia. Regras anteriores dificultavam separar pessoas escravizadas das fazendas onde permaneciam. Isso enfraquecia a garantia e restringia o crédito.

O ponto de inflexão está numa mudança legal. Em 1864, reformas na legislação hipotecária mudaram esse cenário. As novas leis facilitaram liquidações envolvendo pessoas escravizadas como garantia. Em termos práticos, a lei tornou mais fácil transformar garantia em venda. Em termos substantivos, fortaleceu a capacidade legal de deslocar e vender seres humanos para satisfazer obrigações financeiras.

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Banco do Brasil aceitava escravizados como parte da garantia

Quando a execução fica mais simples, o mecanismo se formaliza. Em 1866, no acordo com o governo, o Banco do Brasil criou a primeira estrutura formal do país para empréstimos com garantia. O banco aceitou pessoas escravizadas como parte dessa garantia, convertendo 25 mil contos (25 bilhões de réis), de dívidas existentes em empréstimos lastreado por escravizados. A partir daí, esse uso de pessoas como garantia deixa de ser apenas uma prática dispersa e passa a integrar operações financeiras de grande escala.

Registros regionais reforçam essa centralidade. Em Campinas, os valores hipotecados de 1865 a 1869 ultrapassaram 2,2 bilhões de réis e, dentro das hipotecas rurais, pessoas escravizadas eram a garantia central.

Essa lógica também aparece nos contratos. Em 1866, Francisco Vilela tomou meio bilhão de réis emprestados com uma casa comissária. Como garantia, ofereceu sua fazenda, seu cafezal e 250 pessoas escravizadas. Na prática, isso significava listar, avaliar e vincular pessoas a dívidas.

A comparação atlântica é decisiva para o alcance teórico porque reposiciona a própria pergunta sobre a persistência do regime escravista. Se a escravidão durou tanto porque era rentável, tanto a exploração laboral quanto a financeira contribuíram para tal.

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O ponto comum não é a violência em si, mas transformar pessoas em garantia vendável. Outros sistemas coercitivos eram violentos, mas não convertiam pessoas em ativos financeiros mobilizáveis.

Essa diferença sustenta a proposta de reconceituar a escravidão também como sistema de direitos de propriedade, e não apenas como arranjo de trabalho.

A relevância contemporânea está em reconhecer que uma parte da arquitetura do crédito no Brasil se consolidou quando o Banco do Brasil aceitou pessoas escravizadas como garantia e quando o Estado ajudou a tornar essa garantia mais fácil de liquidar.

Isso não foi um detalhe periférico. Foi um modo de definir o que podia ser transformado em riqueza líquida, quem podia acessar crédito em grande escala e quais tipos de propriedade eram consideradas seguras.

Arranjo permitia que dívidas podiam ser pagas com o corpo de outras pessoas

Enxergar a escravidão como garantia em operações de crédito muda a leitura da própria violência do sistema. Não era apenas trabalho extraído no cotidiano. Era também um arranjo em que dívidas de uma pessoa podiam ser pagas com o corpo de outra.

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A consequência é direta: o crédito não era apenas financiado pela escravidão. Ele era garantido pela possibilidade legal de separar pessoas de suas fazendas, deslocá-las e vendê-las para liquidar obrigações assumidas por terceiros.

Essa dimensão financeira explica a persistência do sistema. A escravidão não era apenas trabalho forçado. Era também a base dos sistemas de crédito no Atlântico.

The Conversation
Foto: The Conversation

Igor Martins recebe financiamento do Handelsbankens forskningsstiftelser (Fundação de Pesquisa do Handelsbanken, projeto P15-0159) e do Riksbankens Jubileumsfond (Fundo do Tricentenário do Banco Central da Suécia, projeto M20-0041).

Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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