O The Conversation Brasil e a revista Cadernos de Saúde Pública/Reports in Public Health (CSP) fizeram uma parceria para trazer ao público artigos inéditos sobre estudos científicos, pesquisas originais e revisões críticas em diversas áreas da saúde coletiva. A revista CSP é publicada desde 1985 com suporte da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e reúne artigos científicos originais voltados à produção de conhecimento no campo da Saúde Coletiva e disciplinas afins. No artigo abaixo, os resultados do estudo que identificou as dificuldades que refugiados de países africanos residentes no Brasil - especialmente mulheres - experimentam ao tentar acessar os serviços do SUS. E entre estes problemas, estão o racismo, o machsimo e a xenofobia.
O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu com a promessa de atender a todos de forma integral e gratuita. Na prática, porém, grupos vulneráveis seguem enfrentando barreiras para transformar esse direito em realidade. É o caso de mulheres congolesas refugiadas no Rio de Janeiro, que fazem parte da segunda maior comunidade de refugiados de guerra na cidade. Elas relataram, em estudo realizado pelo pesquisador Francisco Ortega e por mim, a percepção de que, sem conhecer alguém dentro da instituição de saúde, não se consegue marcar uma consulta ou um exame.
A frase que dá título ao nosso estudo — "Não tem vaga, só se conhecer alguém" — foi dita por uma das interlocutoras que, mesmo com dificuldades de idioma, conseguiu captar rapidamente uma das principais barreiras de acesso: a falta de capital social. Em outras palavras, sem vínculos ou conhecidos dentro do sistema, essas mulheres sentem-se ainda mais distantes do cuidado. O trabalho sobre o tema foi publicado na revista científica Cadernos de Saúde Pública.
Essas mulheres refugiadas chegam ao Brasil após deixarem seu país, na África Central, por causa de conflitos armados, violência política ou risco à vida. Aqui, enfrentam uma nova batalha: superar a desconfiança das instituições, lidar com o racismo, a barreira da língua e a falta de recursos financeiros. As entrevistas reunidas pela pesquisa revelam situações corriqueiras que, somadas, apresentam um retrato dessa exclusão.
De novo, em situações de risco
Uma das participantes contou que conseguiu marcar exames apenas porque uma senhora, com quem conversou e que estava na fila, conhecia alguém dentro da unidade. Outra relatou que levou a filha com problemas de pele à Clínica da Família, mas foi informada de que só teria atendimento com pediatra após seis meses de espera. Em muitos casos, as mulheres descreveram atendimentos rápidos, superficiais e sem explicação adequada dos procedimentos, o que reforça a sensação de descaso e desigualdade.
Além disso, a falta de domínio do português intensifica o sentimento de impotência. Muitas relatam que são interrompidas ou simplesmente ignoradas pelos profissionais do SUS ao tentarem explicar sintomas. "Você aponta e eles dizem: tá, já sei onde está com dor, vou te dar o remédio. Nem fazem a receita direito", disse uma das entrevistadas. Em outro caso, a própria funcionária da farmácia ajudou a interpretar a prescrição e indicar o antibiótico necessário.
A pesquisa também destaca o papel do território. A maioria dessas mulheres vive em favelas ou áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro, onde a violência cotidiana se soma ao racismo estrutural e institucional. Elas compararam a violência urbana carioca à guerra que deixaram no Congo, relatando medo de circular à noite e se expor a novas situações de risco.
Os relatos das mulheres congolesas foram ouvidos no cotidiano da Cáritas RJ, instituição de acolhimento a refugiados, por meio da observação das atividades, de conversas em grupo e entrevistas. A pesquisadora Paula Colodetti participou de aulas de ioga e de rodas de conversa com as mulheres refugiadas para conhecer suas experiências e discutir temas como o acesso à saúde. Foram feitas oito entrevistas em profundidade, com apoio de tradutoras. Os relatos coletados serviram de base para identificar padrões e percepções comuns nas vivências dessas mulheres. As narrativas foram analisadas com métodos qualitativos amplamente usados nas ciências sociais.
Narrativas sobre solidão e solidariedade
Outro ponto importante revelado por esse grupo de mulheres é a solidão. Muitas chegaram ao Brasil sem marido ou filhos, com famílias separadas no processo de refúgio. Essa ausência de rede de apoio local aumenta a vulnerabilidade, já que o capital social - a confiança e as conexões estabelecidas com pares, vizinhos e instituições - é fundamental para acessar serviços de saúde. Sem essas ligações, as chances de conseguir atendimento se reduzem.
Apesar das dificuldades, também há experiências positivas. Algumas mulheres contaram ter recebido ajuda inesperada de vizinhos ou desconhecidos, seja oferecendo carona até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), doando roupas ou ajudando a lidar com a burocracia. Esses relatos mostram que solidariedade e acolhimento existem, mas aparecem de forma pontual, dependendo da boa vontade individual, e não como resultado de políticas institucionais consistentes.
O estudo chama atenção ainda para um choque cultural: no Congo, o sistema de saúde funciona mediante pagamento após a consulta, e casos graves são absorvidos pelo Estado. Já no Brasil, apesar de gratuito, o SUS tem uma lógica burocrática que sobrecarrega as unidades de Saúde e confunde essas mulheres estrangeiras que não falam português. Muitas não entendem por que precisam esperar tanto tempo por uma consulta, ou por que não são atendidas rapidamente em casos aparentemente urgentes.
O que aparece em comum nos depoimentos é a sensação de desconfiança e descrédito em relação ao SUS. As longas filas, a demora para conseguir especialistas, as negativas por suposta falta de documentos, além da percepção de racismo nos atendimentos, constroem uma barreira simbólica e concreta.
Para muitas, a solução tem sido recorrer a redes intracomunitárias, como igrejas e grupos de conterrâneos, que oferecem apoio emocional e prático - mas que, ao mesmo tempo, reforçam o isolamento em relação à sociedade brasileira.
A pesquisa conclui que, se o capital social é essencial para acessar serviços de saúde, sua ausência amplia a exclusão de grupos já vulnerabilizados. Para as mulheres congolesas no Rio, o direito universal à saúde ainda é atravessado por racismo, xenofobia, desigualdade de gênero e pobreza.
Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.