Não existe 'enzima comedora de cartilagem'; colágeno não restaura tecido desgastado

VÍDEO QUE ANUNCIA SUPLEMENTO PARA TRATAR DORES NAS ARTICULAÇÕES FAZ ALEGAÇÕES ENGANOSAS E PERIGOSAS PARA A SAÚDE

12 dez 2025 - 17h42

O que estão compartilhando: vídeo afirma que uma enzima produzida pelo próprio corpo humano seria responsável por "comer" a cartilagem e causar dor nas articulações. Um "ritual natural de 15 segundos" seria capaz de acabar com essas dores e regenerar a cartilagem desgastada. O ritual envolve tomar diariamente, por ao menos três meses, uma fórmula contendo colágeno tipo II, magnésio e vitaminas D e K2. O produto é vendido pelo autor do vídeo.

Card Enzima comedora de cartilagem
Card Enzima comedora de cartilagem
Foto: Reprodução/Facebook / Estadão

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O desgaste nas cartilagens é uma condição causada por múltiplos fatores, incluindo questões genéticas, sobrecarga mecânica, cirurgias prévias e até questões de gênero. A ação desordenada de alguns grupos de enzimas pode contribuir para esse desgaste, mas não existe uma "enzima comedora de cartilagem".

Publicidade

O autor do vídeo promete reduzir e até acabar com dores nas articulações a partir do uso de um suplemento. Mas especialistas ouvidos pelo Verifica apontam que o uso de colágeno tipo II não é capaz de regenerar a cartilagem perdida, apesar de trazer benefícios.

Vale lembrar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe a circulação de anúncios com indicação terapêutica para suplementos.

Procurada, a empresa que fabrica o produto disse que ele "auxilia na saúde das articulações e ossos, mas não há evidências científicas que comprovem a regeneração da cartilagem perdida". A fabricante disse ter registro na Anvisa, mas reconheceu que o suplemento não está registrado na agência.

O autor do vídeo não enviou um posicionamento próprio.

Publicidade

Saiba mais: O vídeo compartilhado no Facebook mostra o médico Dayan Siebra, que tem registro no Conselho Federal de Medicina como angiologista e cirurgião cardiovascular.

A postagem leva a um site que imita a identidade visual do YouTube. Nessa página, há mais um vídeo gravado pelo mesmo médico. Logo abaixo, são listados links para venda do suplemento alimentar. O produto é fabricado por uma empresa da qual o médico é sócio. Ele promete que o suplemento tem ação anti-inflamatória e analgésica e seria o único capaz de inibir a ação da "enzima comedora de cartilagem".

Existe uma enzima 'comedora de cartilagem' que provoca dor nas articulações?

Não.

O autor do vídeo afirma que existe uma enzima descoberta em 2005 por pesquisadores da Universidade de Cambridge que atua na renovação da cartilagem. Segundo ele, a partir dos 40 anos, há uma produção desordenada dessa enzima, que faz com que ela destrua a cartilagem "nova", e não apenas a "velha".

Publicidade

Mas, na realidade, não há uma "enzima misteriosa" que coma a cartilagem das pessoas e cause dor. Isso de acordo com a médica ortopedista Camila Cohen Kaleka, presidente da Comissão de Ortobiológicos da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (Sbot).

"O que sabemos, há décadas, é que a degradação da cartilagem é um processo complexo, mediado por várias famílias de citocinas (um tipo de proteína) e por uma cascata inflamatória que desregula o equilíbrio entre formação e destruição da cartilagem saudável", disse.

De fato, há alguns grupos de enzimas que atuam nesse processo. Em 2005, pesquisadores da Universidade de Melbourne, na Austrália, mostraram que uma enzima era a principal causadora da degradação da cartilagem em camundongos. Porém, os cientistas concluíram que eram necessários estudos adicionais para saber se isso se aplicava a humanos.

O ortopedista Phelippe Valente Maia, coordenador assistencial do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), afirma que existem enzimas que contribuem para o desgaste da cartilagem, mas não podem ser consideradas o único fator.

Publicidade

"Essas enzimas, inicialmente, ajudam no equilíbrio da cartilagem, mas em algum momento ocorre um excesso e elas agem de forma reversa", disse. "Isso acontece, mas não é o único fator da osteoartite e osteoartrose, e você não consegue evitar essa condição inibindo apenas um fator".

Médicos de IA e deepfakes de celebridades: as estratégias da venda irregular de suplementos online

O que causa, então, o desgaste da cartilagem?

Diferentemente do que diz o vídeo, uma única enzima não causa a degradação da cartilagem. Também não há evidências que analgésicos e anti-inflamatórios comuns possam contribuir para o desgaste. O que se sabe é que anti-inflamatórios não hormonais podem prejudicar a cicatrização ou acelerar a degeneração em caso de uso crônico e em altas doses.

Segundo Maia, a degradação da cartilagem se deve a diversos fatores. Entre eles, características genéticas, obesidade, cirurgias prévias e até mesmo o gênero do paciente.

Publicidade

"Mulheres têm uma predisposição maior do que o homem a ter desgaste. Então, não se pode creditar (a degradação) a um fator só", afirmou.

Kaleka acrescenta outras causas, como idade, excesso de esforço físico, lesões prévias, fatores metabólicos e doenças inflamatórias.

O colágeno tipo II acaba com as dores e regenera a cartilagem?

Não é bem assim. O colágeno é uma fonte de proteína e um dos componentes essenciais da cartilagem. Há estudos que mostram que o colágeno tipo II auxilia na melhora da função articular e reduz a dor. Mas nem ele, nem qualquer medicamento no mercado atualmente é capaz de regenerar a cartilagem perdida.

É o que explica o ortopedista João Henrique Almeida, médico do esporte e intervencionista em dor.

"O colágeno pode ajudar a melhorar os sintomas e proteger a cartilagem restante, mas não a restaura ao seu estado original. Não tem como voltar ao que era antes", disse.

No vídeo analisado, o autor do conteúdo cita um estudo feito em 2016 por pesquisadores da Universidade da Califórnia sobre os benefícios do colágeno tipo II em pacientes com dores nas articulações.

Publicidade

O estudo existe, mas não afirma que o colágeno tipo II acaba com as dores, nem menciona regeneração da cartilagem.

Maia, do Into, explica que há uma dificuldade em torno dos estudos que apontam melhora na função e redução da dor com o uso de colágeno.

"A dificuldade é de isolar todos os fatores. Tem um viés da empresa que patrocina os estudos, por exemplo. Hoje, a gente sabe que o colágeno é uma substância importante, mas ainda faltam muitos estudos que comprovem a real eficácia", disse.

Kaleka, da Sbot, diz que é preciso lembrar que a cartilagem articular do adulto tem uma capacidade de regeneração muito limitada.

Em termos práticos, isso significa que pequenas lesões ou desgaste inicial podem ter algum grau de reparo parcial. Mas lesões maiores e desgaste avançado não voltam ao tecido original. O que existe hoje são intervenções cirúrgicas ou biológicas para reparar - não regenerar totalmente - as áreas afetadas na cartilagem.

Vídeo oferece suplemento como solução terapêutica, o que não é permitido

Publicidade

O colágeno vendido no vídeo é um suplemento alimentar, que não pode ser vendido como se fosse um remédio, de acordo com a farmacêutica Priscilla Dejuste, coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Suplementos Alimentares do Conselho Federal de Farmácia (CFF).

"Os suplementos são da categoria de alimentos. Eles não curam, não tratam e não previnem. Eles servem para ser utilizados em indivíduos saudáveis", explicou.

Dejuste explica que, por não ser um medicamento, o anúncio de um suplemento só pode alegar o que é permitido pela Anvisa. No caso do colágeno tipo II, só é permitido dizer que ele "auxilia na manutenção da função articular".

Na página oficial do site da fabricante do produto, há um aviso de que as informações "não podem ser consideradas como aconselhamento médico pessoal" e que os produtos "não se destinam a tratar, diagnosticar, curar ou prevenir qualquer doença". No entanto, o anúncio em que o médico diz que o produto acaba com as dores e regenera a cartilagem está hospedado no mesmo site.

Publicidade

Em outro trecho do vídeo, o autor afirma que o produto é fabricado por um laboratório certificado pela Anvisa. O Verifica buscou todos os suplementos de colágeno tipo II registrados na agência e nenhum deles é fabricado pela empresa. A empresa reconheceu que "o produto é fabricado por laboratório certificado, porém não consta como suplemento registrado especificamente na agência".

Como já mostrou o Verifica, 63% dos processos de investigação da Agência abertos entre 2020 e 2025 diziam respeito a infrações relacionadas a suplementos.

Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se