O STF inicia hoje o julgamento de Jair Bolsonaro e aliados por tentativa de golpe, com evidências apontando para uma provável condenação, enquanto pressões e sanções de bolsonaristas nos EUA ganham destaque.
O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, nesta terça-feira, 2, um julgamento histórico: é a primeira vez no Brasil que uma investigação criminal por tentativa de golpe de Estado contra um ex-presidente da República e militares avança ao ponto de torná-los réus e levá-los a julgamento. Jair Bolsonaro (PL), que esteve na Presidência entre 2019 e 2022, e mais sete aliados podem ser condenados se forem considerados culpados pela trama golpista.
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O julgamento do núcleo principal da trama golpista ocorre em meio à pressão de bolsonaristas nos Estados Unidos, com atuação destacada de um dos filhos do ex-presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que reside no país desde março. Em solo norte-americano, ele chegou a manter contato com a Casa Branca para pedir apoio ao pai -- a ponto de o governo de Trump pressionar o Brasil em defesa de Bolsonaro.
Como retaliação, os EUA implantaram tarifas de 50% sobre produtos importados do Brasil, revogaram vistos de autoridades brasileiras e incluíram o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, na lista de sancionados pela Lei Magnitsky, mecanismo aplicado a violadores de direitos humanos.
Após o veredito, o que esperar dos EUA?
As ações de Eduardo nos EUA, no entanto, não influenciaram o andamento do processo contra seu pai, que será julgado a partir desta terça-feira. Uma possível condenação pelo STF, porém, pode acarretar novas sanções contra o Brasil e membros da Suprema Corte, avalia Clarissa Forner, professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
No entanto, ela pondera que retaliar talvez não seja a estratégia prioritária do governo norte-americano, visto que a medida pode aprofundar a aproximação do Brasil com outros centros de poder, como a China.
"Há um alto grau de imprevisibilidade em se tratando de Trump e dos posicionamentos dos diferentes grupos que compõem a administração", avalia a professora. "A intensificação da retaliação é certamente uma possibilidade, mas ela também incorre em riscos de aprofundar o movimento, já em curso, de aproximação brasileira de outros centros de poder, como a China".
Ela lembra que o governo brasileiro já tem sinalizado e costurado encaminhamentos com outros países, "de modo que, embora a retaliação seja possível, também é importante compreender que ela tem limites estratégicos". "E, nesse sentido, a aproximação a Bolsonaro é instrumental, mas não penso que seja vista como um fim em si mesmo pela administração trumpista", completou a especialista.
Três motivações
Para Clarissa, é possível identificar três motivações estratégicas para o interesse dos EUA no caso.
- Primeiro, uma "forte correlação e interesse trumpista na desregulamentação da atuação das chamadas big techs", pauta comum à extrema-direita global.
- Segundo, a articulação transnacional desses movimentos, onde o apoio a Bolsonaro simboliza esse alinhamento, apesar de não haver uma proximidade pessoal real entre os dois líderes.
- Terceiro, o contexto geopolítico mais amplo, incluindo a rearticulação dos BRICS e os interesses históricos dos EUA na América Latina por recursos -- como minerais raros -- e influência militar.
Quanto ao impacto internacional, Forner acredita que a narrativa de perseguição política ecoa principalmente dentro das redes de extrema direita, mas não necessariamente em fóruns multilaterais ou governos. "Há muitos questionamentos dentro e fora dos EUA a respeito do tarifaço e das medidas adotadas por Trump. Parece, portanto, que a pressão atua mais no sentido de reforçar essa imagem internacional menos positiva dos próprios EUA, do que resvala sobre o Brasil", afirma.
Ela ainda destaca que, embora não veja um "nexo direto" entre Trump e Bolsonaro, a narrativa serve a um propósito para as eleições de 2026, configurando "ingerência política dos EUA sobre o Brasil".
Segundo Isabela Kalil, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e coordenadora do Observatório da Extrema Direita, a dimensão do apoio internacional poderia ser maior não fosse o afastamento de Elon Musk de posições de influência direta no governo dos EUA.
"Caso contrário, teríamos de forma mais incisiva representantes políticos e de plataformas digitais engajados na campanha contra o julgamento", explicou.
STF tem conjunto probatório para condenar, avalia especialista
Coordenador do curso de Direito da ESPM, Marcelo Crespo afirma que o conjunto probatório contra os reús é "expressivo" e se divide em três eixos principais:
- A delação de Mauro Cid: O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro trouxe revelações sobre reuniões, tratativas e o monitoramento do ministro Alexandre de Moraes;
- Provas documentais e digitais: Incluem a minuta do decreto de intervenção, trocas de mensagens entre militares e aliados políticos, e registros de mobilização logística -- como os da Polícia Rodoviária Federal no dia da eleição;
- O contexto fático: Abrange os acampamentos em frente aos quartéis, seu financiamento e a escalada da violência que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
"Quando analisamos o conjunto probatório, e não provas isoladas, o caso se torna muito robusto", explicou Crespo ao Terra.
"O contexto completo é crucial: a viagem de Anderson Torres aos EUA, Bolsonaro não passando a faixa e também viajando após os eventos. É raríssimo uma condenação se basear em uma única prova ou situação. Na imensa maioria dos processos penais, a decisão é sempre tomada com base no contexto fático e no conjunto de provas. E neste caso, a delação, as provas documentais e todo o contexto são bastante robustos, permitindo esperar uma condenação do ex-presidente".
Segundo ele, "o cenário mais provável é a condenação", também pelo fato de o STF ter firmado jurisprudência de que atos contra a democracia devem ser punidos a partir da Lei 14.197/21, que foi sancionada pelo próprio Jair Bolsonaro em 2021. A lei revogou a Lei de Segurança Nacional (LSN) e definiu crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Além disso, avaliou que há uma "lógica institucional de autoproteção" do Supremo, o que tornaria improvável uma absolvição em um caso que envolve um ataque às instituições. No entanto, ponderou que cenários alternativos poderiam incluir a "desclassificação" de condutas para alguns réus -- ou seja, o reconhecimento de crimes menos graves para quem teve menor atuação na trama.
Falta de jurisprudência torna cenário 'imprevisível', diz advogado
Quanto às penas, Marcelo Crespo detalhou que crimes como o de golpe de Estado (art. 359-M do CP) e tentativa de abolição do Estado Democrático (art. 359-L) permitem variações significativas, de 4 a 12 anos e de 4 a 8 anos, respectivamente. A fixação dessas penas depende de fatores como culpabilidade, antecedentes e conduta social.
"É muito difícil prever o cenário, porque isso depende da avaliação de cada ministro. É uma situação inédita no Brasil: nunca aplicamos esses tipos penais específicos antes, não tivemos ninguém julgado por esses crimes. Portanto, não há jurisprudência que permita afirmar com certeza como será o desfecho", afirmou Crespo.
O especialista explica que, de acordo com o Artigo 59 do Código Penal Brasileiro, a culpabilidade é uma das circunstâncias judiciais consideradas para a dosimetria da pena e refere-se ao grau de reprovação da conduta do agente. Esse conceito vai além da simples existência de dolo ou culpa, avaliando a intensidade da censura ao ato cometido.
Para isso, o juiz deve analisar elementos como a maior ou menor intensidade do dolo, a premeditação, a existência de motivo fútil, bem como as condições pessoais do réu e as características do crime, a fim de determinar o quanto a ação praticada é, de fato, reprovável.
"Quem mais se via na mídia atacando o Supremo, os ministros e as Forças Armadas era o próprio Bolsonaro. Você não via o Anderson Torres, por exemplo, fazendo isso. É possível que Torres seja condenado, mas, ao avaliar sua personalidade, os ministros podem ponderar: 'Tudo bem, ele não é o principal articulador'. Ou seja: ele participou, mas sua personalidade é avaliada como menos problemática que a de Bolsonaro. Essa diferença pode resultar em uma pena menor", avaliou Crespo.
Sobre a delação de Mauro Cid, Crespo acredita que é "pouco provável que seja anulada" por razões institucionais, ainda que eventuais inconsistências em seu comportamento possam reduzir os benefícios da colaboração. Ele acredita que as estratégias de defesa incluam alegações como uma possível parcialidade do ministro Alexandre de Moraes, a questão da competência do STF para julgar o caso e a tese de que houve apenas "ato preparatório" e não tentativa de crime. No entanto, avaliou que "não há indicativos de que essas teses serão absorvidas" pela Corte.
Para eventuais recursos, o especialista explicou que a defesa pode tentar embargos infringentes se houver divergência entre os ministros, como, por exemplo, um voto isolado favorável à absolvição, mas lembrou que o caminho é limitado. "Um voto só provavelmente não tem força para mudar todo o contexto", disse.
Já sobre a possibilidade de prisão domiciliar para Bolsonaro, Crespo afirmou que, embora o ex-presidente enfrente questões de saúde, ele segue ativo politicamente, e que a jurisprudência brasileira normalmente não é generosa com esse tipo de benefício. "Não dá para dizer que ele não tem a menor condição [de cumprir pena em regime comum], mas talvez se conceda a prisão domiciliar com base em precedentes recentes".
Julgamento é decisivo para 2026
A participação ou não de Bolsonaro nas campanhas eleitorais de 2026 é considerada o elemento de maior impacto potencial a ser definido pelo julgamento, embora Hilton Fernandes, cientista político da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), avalie que a polarização política deva permanecer independentemente do resultado. Embora Bolsonaro já esteja inelegível, políticos e candidatos tenderão a utilizar sua imagem como símbolo de um discurso de oposição a Lula.
"Neste sentido, para o candidato apoiado por Bolsonaro, pode ser até mais vantajoso que o ex-presidente esteja preso durante a campanha, e por isso há tanta cobrança por parte da família Bolsonaro que os pré-candidatos se posicionem pela anistia", destacou Fernandes.
Segundo o especialista, o julgamento carrega um "significado simbólico importante" para a democracia. "Reforça a responsabilização de quem ocupa cargos públicos perante a sociedade", afirmou. "Além disso, o julgamento pode ajudar na reorganização das instituições, demonstrando que as leis precisam ser respeitadas, sem atalhos autoritários", acrescentou.
Ele ressalta que o Brasil precisa "superar esse ponto para seguir em frente", já que a discussão sobre a tentativa de golpe não pode continuar "obstruindo as importantes questões políticas, econômicas e sociais que precisam ser tratadas pelo poder público".
Quanto aos efeitos na política nacional, o cientista político avalia que o julgamento já foi "‘precificado’" pela classe política. "A expectativa é de que Jair Bolsonaro seja condenado, mas mantenha uma relevância eleitoral", diz. Por isso, possíveis candidatos em 2026 alinham seus discursos à narrativa de que o ex-presidente está "sendo injustiçado", na esperança de captar votos do eleitorado bolsonarista, avalia ele.
De acordo com a professora Isabela Kalil, a extrema-direita se reorganizará em caso de condenação, mas manterá Bolsonaro como liderança simbólica mesmo inelegível, reforçando o senso de perseguição entre seus apoiadores. "Isso pode reforçar um senso de pertencimento de parte de seus apoiadores unidos pela ideia de uma suposta injustiça", afirmou ao Terra.
Ela destaca que não há um sucessor único, mas uma disputa fragmentada entre figuras como Michelle Bolsonaro e Tarcísio de Freitas, que ainda dependem da aura de Bolsonaro. "Não há no campo da direita e extrema direita hoje alguém que consiga ocupar inteiramente ou substituir Jair Bolsonaro. Mesmo figuras fora do clã como Tarcísio são dependentes do apoio de Jair. Esse julgamento pode enfraquecer a base social do bolsonarismo em termos de tamanho, mas também irá radicalizar os que se mantiverem", destacou.
Quem também reforçou a força eleitoral de Bolsonaro foi o cientista político Marcelo Di Giuseppe, ao destacar que não há qualquer expectativa de que a eventual prisão do ex-presidente significaria o fim de sua influência. "Bolsonaro construiu algo além de um partido: criou uma identidade política. Seus apoiadores não se definem como militantes de sigla, mas como bolsonaristas e isso é central para entender o movimento. A ideia de que prender Bolsonaro vai tirá-lo do jogo ou dissipar sua base é um equívoco. Sua influência segue determinante e qualquer candidato que ele abençoar terá o apoio orgânico desses eleitores, ainda que ele próprio não esteja na disputa"
Segundo Isabela, a radicalização atual da extrema-direita não apresenta, no momento, um caráter violento comparável à atuação de grupos de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) ou outros grupos armados mobilizados após as eleições de 2022, como ocorreu durante os ataques de 8 de janeiro. A especialista avalia que, atualmente, a manifestação radical concentra-se mais no "descumprimento de ordens judiciais", embora ressalve que esse panorama "possa mudar" futuramente.
O Terra entrou em contato com as defesas de Jair Bolsonaro, Mauro Cid e do general Walter Braga Netto, mas não obteve nenhum retorno. A reportagem também tenta contato com a defesa dos outros réus. O espaço permanece aberto para manifestações.