“Vendia pinga até pro guarda”, diz ex-detento que fazia “Maria Louca” no Carandiru
Os esquemas para conseguir os ingredientes, fermentar e destilar a pinga mobilizavam a economia informal do presídio
Ex-detento do Carandiru relata como criou um esquema de produção e venda da pinga clandestina na prisão, a chamada Maria Louca, mostrando a criatividade e as estratégias de sobrevivência no presídio.
Marcos Rocha chegou ao Carandiru, complexo de cadeias em São Paulo, após o massacre que deixou 111 presos mortos. Foi morar no pavilhão 8 e, um ano depois, abriu um bar dentro da cela 314 I, onde destilava e vendia Maria Louca — a pinga clandestina e improvisada que se tornou histórica nos presídios brasileiros.
Apelidado de Fumaça, ele chegou ao Carandiru sem nada nem ninguém. “Havia pessoas que se submetiam a morar em um barraco-bomba, que tinha de tudo dentro: arma, droga, pinga. O cara se dispunha a ficar guardando essas coisas. Eu enxerguei uma oportunidade de empreendimento e me ofereci para guardar cachaça, ficando com vinte por cento”.
Ele observava o detento que fabricava pinga, desde a coleta das cascas de fruta usadas na fermentação da Maria Louca, até os esquemas para conseguir fermento e arroz, essenciais para o processo, ou mesmo o próprio fermento, mais raro. Ao acompanhar a fabricação, foi guardando sua porcentagem e aprendendo os procedimentos.
“Aí é que vem a engrenagem, é uma rede dentro da cadeia: tem que achar o cara que tem o açúcar; o contato do fermento; saber quem é o cara da manutenção, que mexe com freezer e geladeira e pode retirar uma serpentina; o cara da hidráulica, que pode arrumar um caninho; quem trabalha na manutenção e pode conseguir um balde, um tambor”, enumera.
Maço de cigarro vermelho é a moeda mais valiosa
Nego Marcos classifica como “quase uma mágica” a forma de conseguir os ingredientes da Maria Louca e as peças para montar um equipamento improvisado de destilação. “Comprei o tambor; o carrinheiro trazia da cozinha. Paguei com ‘sangue de boi’ — que são os cigarros Hollywood ou Marlboro vermelho, os mais caros da cadeia. Era preciso pagar outro cara para trazer para o pavilhão e mais um para deixar na cela”.
O risco de fabricar é altíssimo, mas no Carandiru as portas das celas — diferente da imagem clássica das grades — eram totalmente fechadas, com uma abertura para a comida e um buraco para observar o interior. Se não houvesse alterações, o guarda não entrava. Era preciso tomar cuidado com o cheiro da fermentação e da pinga, ainda mais forte quando destilada.
“Eu só destilava de domingo, que era visita. Começava cedo e três, quatro da tarde, tinha terminado o serviço. Em dia de visita, os guardas não sobem. Se precisasse sumir com os produtos, entravam os ninjas, eles sumiam os flagrantes, por alguns sangues de boi. Cheguei a tirar 230 litros, vendia até pro guarda. Se era muito? Mano, era pouco, tinha sete mil homens no Carandiru.”
Fumaça levou dois anos para montar a estrutura de produção e comércio de pinga no Pavilhão 8. Pode parecer estranho para quem não conhece a vida nos presídios, mas a economia funcionava a milhão. Ele chegou a mandar dinheiro para a família, que entregava durante as visitas. “Tinha gente que produzia para beber, outros para vender. Eu tinha pinga full time. Comecei a ter renda.”
“Se minha pinga matasse alguém, eu não estava mais vivo”
O perfil dos clientes do bar de Fumaça no pavilhão 8 do Carandiru era, na maioria, de presos pobres. Compravam pequenas doses, servidas em saquinhos, por um, três, cinco ou dez reais. Os poucos que tinham dinheiro compravam o litro.
“Meus clientes eram o motorista que atropelou alguém, que bebeu e enfiou a faca em um cara no bar, em alguma briga. Tinha vários tiozinhos nordestinos. Chegavam, ficavam bebendo, conversando, tinha hora que juntava uns dez na resenha. Eu até pintei a cela, para dar uma cara mais alegre”, lembra.
Antes de finalizar, perguntamos a Nego Marcos sobre destilados com metanol. “Eu acho que não tem sentido a facção estar nisso. Como diz a própria polícia: eles estão num nível de máfia, na Faria Lima. O crime organizado veria mortes com bebida como problema. Foi por isso que excluíram o craque, dá muito problema. Se eu vendesse pinga que matasse alguém na cadeia, eu nem estava mais vivo.”