Modelo perdeu trabalhos por causa de cicatrizes e agora atua para mudar 'imagem' do câncer
Gislene Charaba afirma que a inclusão também está na maneira como os pacientes são retratados na TV e no cinema; conheça a terceira história da série 'Vida pós-câncer'
A modelo Gislene Charaba conta que as ofertas de trabalho diminuíram pela metade nos últimos anos. A culpa não foi da pandemia. Muito menos de uma retração do mercado da moda. Segundo ela, a razão está no decote: as cicatrizes de uma cirurgia para a retirada de dois tumores na mama esquerda em 2017. A história de Gisele é a terceira da série "Vida pós-câncer".
Essa cirurgia foi a pior parte do tratamento de câncer de mama. Já havia metástase para o esterno, esse osso que fica no meio do peito. Por isso, os médicos do Hospital Sírio-Libanês tiveram de retirar 73% do osso, além de um quadrante da mama. Um enxerto de pele do músculo do lado esquerdo das costas ajudou no preenchimento. A intenção era deixar uma cicatriz fina, pois os cirurgiões conheciam a profissão da paciente.
Foram 16 horas de cirurgia, três dias de UTI e mais 40 de quase total imobilidade. Mas o número que vem a seguir é de alegria. Quase sessenta dias depois da cirurgia, com ajuda da irmã para se trocar, ela participou de um desfile beneficente com um vestido rosa. Mesmo com dores, cicatrizes, sentindo-se repuxada por dentro e com o peito operado bem roxo e inchado, ela sorria.
Foi quase o mesmo sorriso aberto que ela exibe em uma foto na parede do seu apartamento, na Avenida Paulista. A foto foi feita para a campanha Outubro Rosa em 2019. Essa imagem não é a primeira que a gente vê quando entra na casa. Logo em frente à porta existe um pequeno altar. Estão lá Santo Pelegrino, padroeiro dos pacientes de câncer, além de imagens de Nossa Senhora Aparecida e um recipiente com água benta. É o seu cantinho da oração. Ele sempre existiu, mas passou a ser frequentado nos últimos anos.
Os convites para modelar, por outro lado, quase desapareceram. No auge da carreira, ela participou de desfiles em praticamente todos os programas de auditório da TV aberta, comerciais de cerveja, grandes marcas de lingerie e de roupas femininas. "Procurei empresas com as quais eu já havia trabalhado. Eram contratos que eu costumava pegar, mas agora não passo em 50% dos testes", diz a paulista de Américo Brasiliense (SP) de 34 anos. Por isso, ela permite que as empresas modifiquem digitalmente seus retratos e apaguem as cicatrizes. Algumas apagam; outras, não.
A voz de Gislene, a Gi, pela inclusão faz parte de um coro. É uma luta coletiva. Embora cada vez mais jovens sejam diagnosticados com câncer, a medicina evolui de forma rápida. Com isso, os diagnósticos apresentam maiores chances de superação enquanto os tratamentos garantem qualidade de vida. Isso cria um contingente de pessoas que precisam voltar ao trabalho.
Uma análise de dados do Coronel Institute of Occupational Health, na Holanda, realizada em 2017 com 36 estudos e mais de 20mil sobreviventes do câncer, mostra que 34% dos pacientes curados não conseguem se recolocar por causa de sequelas físicas e emocionais. As taxas de desocupação aumentam em casos de câncer de mama (36%), gastrointestinal (49%) e no aparelho reprodutor feminino (49%), com tratamentos mais extensos. No Brasil não existe uma pesquisa desse tipo.
"É essencial desmistificar o câncer e todo o peso que a doença carrega há décadas. Hoje, o paciente oncológico pode, sim, ter uma vida normal, ainda que esteja em tratamento. Os medicamentos, muitas vezes, são orais e causam quase nenhum efeito colateral", diz a médica sanitarista Catherine Moura que é CEO da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale).
Banco de talentos
Para minimizar o problema, o Instituto Quimioterapia e Beleza lança no final deste mês a plataforma "Abre Portas" para a recolocação profissional de pacientes oncológicos. É um banco de talentos em que o paciente (homem e mulher) pode cadastrar seu currículo. As empresas, por sua vez, selecionam profissionais desse segmento. "Há um certo preconceito das empresas", analisa a psicóloga Diana Vilas Boas, diretora de Relações Humanas do Instituto. "Existem limitações, maiores ou menores, mas o trabalho traz um novo tipo de esperança para o paciente, que se sente integrado. Isso pode repercutir positivamente no tratamento", completa.
A plataforma oferece ainda cursos e treinamentos a partir de parcerias com o Sebrae e a FGV. "Julgamos fundamentais os treinamentos para que os candidatos aperfeiçoem suas habilidades e se preparem para participar de processos seletivos", afirma Luciana Amaral, diretora de Pessoas, Planejamento e Sustentabilidade da Tokio Marine, patrocinadora da ação a partir de seu programa ESG.
Aluna do penúltimo ano de Comunicação Midiática na PUC/SP, Gi afirma que a inclusão também está na maneira como os pacientes são retratados. Ela quer criar um projeto de curadoria para orientar empresas e o público em geral para evitar estereótipos e valorizar o olhar de quem viveu a doença. Hoje, ela faz isso nas redes sociais.
"As novelas de TV e o cinema retratam com frequência o sofrimento e a morte dos pacientes de câncer. Não vemos pacientes que superaram a doença e se apaixonaram, tiveram filhos. São histórias tristes, doídas, sofridas. Parte do tabu e do medo da doença vem dessa representação", avalia.
Veja perguntas e respostas
Como encontrar emprego depois do câncer?
O Instituto Quimioterapia e Beleza (https://www.quimioterapiaebeleza.com.br) vai lançar no dia 27 de setembro uma plataforma chamada "Abre Portas" voltada para a recolocação profissional de pacientes oncológicos. Homens e mulheres vão poder cadastrar seus currículos e participar cursos sobre a preparação para entrevistas, por exemplo. As empresas, por outro lado, vão selecionar profissionais desse segmento.
A Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) (https://www.abrale.org.br) possui uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) que oferece de forma gratuita aos pacientes cadastrados em nossa organização vagas para os Cursos de Formação Inicial Continuada. A entidade também entrega o selo "Investimos na Vida" para as empresas comprometidas com a saúde de seu funcionário e das questões sociais que envolvem o câncer. Mais informações também pelo telefone 0800 773 9973.
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