Icterícia neonatal: conheça os riscos e tratamentos para o 'amarelão'
Doença que acomete recém-nascidos pode evoluir e deixar sequelas graves se não for tratada corretamente
Quando Maria Rita de Sousa teve alta do hospital após o nascimento de sua segunda filha, não imaginava que o amarelinho na pele de sua bebê poderia se transformar em uma paralisia cerebral. "Bela nasceu de 38 semanas. Estava dentro do previsto. Nasceu, chorou, tudo certinho", conta. No dia da alta, ela percebeu os pontos amarelos na pele da filha, mas o médico recomendou apenas que colocasse a menina no sol. "Dois dias depois, ela só dormia. Isso foi em 21 de dezembro de 2016. No dia 23, ela começou a ter febre alta e a convulsionar. E o amarelo já tinha tomado conta", relembra Maria Rita. O diagnóstico de paralisia cerebral veio após a avaliação de um neurologista e um exame que detectou alto nível de bilirrubina no sangue.
De cada dez recém-nascidos no Brasil, de 6 a 8 desenvolvem icterícia (ou amarelão) nos primeiros dias de vida, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria. Desses, de 8% a 11% (principalmente entre os bebês prematuros) podem apresentar um quadro mais grave de icterícia, a hiperbilirrubinemia, que pode levar à paralisia cerebral, mais conhecida como kernicterus, ou à morte.
A médica Romy Schmidt Brock, membro do Departamento de Neonatologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo, explica que a primeira avaliação, em caso de pele amarelada no bebê, é o exame físico. "É o médico neonatologista que está acostumado a ver a icterícia, porque isso não é tão simples, precisa de um certo treinamento. A partir dessa avaliação, indica-se a coleta de sangue ou a realização de um exame para determinação transcutânea do nível de bilirrubina. Funciona como um exame de triagem. E hoje em dia a gente tem um aparelho portátil que consegue o resultado no momento em que você encosta na pele do bebê. Assim, a gente tem uma estimativa do valor da bilirrubina total."
Em 2021, 78 bebês morreram por complicações da icterícia neonatal no País, de acordo com dados preliminares do Painel de Monitoramento de Mortalidade Infantil e Fetal, do Ministério da Saúde. Nos últimos 25 anos, foram ao todo 3.588 óbitos, ou seja, uma média de 143 casos por ano.
O filho mais novo de Fátima Magalhães faz parte dessa triste estatística. Ela conta que o menino nasceu de parto normal e saiu do hospital antes das 24 horas de vida. "Eu tive Theo de parto normal sem nenhuma intercorrência. Quando saí, ele já estava com os olhos amarelos. Teve febre no segundo dia de vida. Ele era muito quietinho e não chorava nem pra mamar. No terceiro dia, quando fui ao posto de saúde vacinar e fazer o teste do pezinho, ele estava muito, muito amarelo. E só me orientaram a dar banho de sol. Daí só foi piorando, parou de sugar, e quando chegamos ao hospital, já estava tendo crises convulsivas", conta ela.
O menino ficou oito dias esperando uma vaga na UTI, e mais 15 internado. "Voltamos para casa com o diagnóstico e com orientação para procurar um neuropediatra. Ele teve perda bilateral de visão e audição, teve sequelas na parte motora, dificuldade de deglutição, tomava oito medicações por dia e fazia fono e fisio todos os dias."
Fátima conta que o filho teve a primeira pneumonia com 4 meses, quando veio a primeira orientação para colocar gastrostomia (procedimento para facilitar a alimentação), porque o bebê engasgava muito. Com 6 meses, Theo teve outra pneumonia e foi para UTI novamente. "Dessa vez não teve jeito, foi colocada a gastrostomia. Voltamos para nossa cidade e 1 mês depois, teve sepse e faleceu com 10 meses", lamenta a mãe.
Segundo ela, a fototerapia é o tratamento mais adequado em casos de hiperbilirrubinemia porque altera a conformação estrutural do pigmento denominado bilirrubina e ajuda com que ele seja eliminado pela urina e pelas fezes. No entanto, muitas vezes, o grau de produção de bilirrubina é tão alto que a fototerapia não consegue impedir que os níveis do pigmento continuem aumentando.
"Nesse caso, a gente indica a exsanguineotransfusão, que seria a troca de sangue de duas volemias, volumes sanguíneos, desse bebê, e que tiraria, nessa troca, tanto a bilirrubina para impedir que ocorra o kernicterus quanto os anticorpos que estão causando a hemólise dos glóbulos vermelhos, e com isso, causando o aumento da bilirrubina", explica a médica.
Banho de picão e banho de telha virgem ajudam a melhorar a icterícia?
Banho de "picão", banho de telha virgem e banho de rosa branca são algumas das soluções populares contra a icterícia. No entanto, não há comprovação científica para nenhuma delas - que podem retardar a procura de um médico, algo fundamental para que a doença não se agrave.
Segundo dados divulgados em 2010, pela Sociedade Brasileira de Pediatria, o país apresentava cerca de 1,5 milhão de recém-nascidos, por ano, com icterícia nos primeiros dias de vida, sendo que em torno de 250 mil encontravam-se em estado crítico e com maior risco de neurotoxicidade, kernicterus ou óbito.
Desafios e conquistas diárias
Para os pais de filhos com kernicterus, os desafios são constantes e cada conquista é motivo de comemoração. "Aprendo todo dia com ela. Ressignificou a minha vida e me trouxe uma força, uma coragem, que eu jamais imaginei. Se eu falar que eu não quero que a Bela corra a São Silvestre e tenha autonomia, vou estar mentindo. Mas o que eu quero é que ela tenha qualidade de vida e que seja feliz e, com as limitações dela, que esteja bem clinicamente, sem pneumonia ou sem crise respiratória", declara Maria Rita.
"Dudu já tinha uns 8 meses quando a gente confirmou que ele tinha tido o kernicterus", conta Mara Terra, mãe do menino. "A gente percebia que ele não estava fazendo tudo o que deveria fazer na época certa: com 3 meses, sustentar o pescoço, com 6 meses, sentar, nada disso ele fez, mas o pediatra dele falava que estava tudo normal, que ele só estava demorando um pouquinho".
Encaminhado para um neuropediatra, foi confirmado que o menino tinha tido kernicterus e que estava com paralisia cerebral. "Ele falou pra começar o tratamento: fisioterapia, fono, terapia ocupacional, todas essas coisas. Fisioterapia, ele fez até uns 11, 12 anos, mais ou menos. Depois, passou a fazer academia e pilates e muitas outras coisas, como equoterapia, natação e aula de artes", conta a mãe.
Josiane Veloso teve uma experiência parecida com o filho, Nícolas. O bebê nasceu normal e teve alta um dia depois de nascer. Com seis dias, Josiane percebeu que o filho estava muito amarelo e o levou de volta para o hospital. No exame de sangue, foi detectado um nível alto de bilirrubina e Nícolas ficou 12 dias na UTI. Com 4 meses, foi indicada a fisioterapia e depois, a equoterapia.
"Hoje Nícolas anda, com algumas dificuldades, fala, se alimenta sozinho. Ele ainda não desfraldou, mas já está estudando, na primeira série. Aprendeu a ler e escreve com alguma dificuldade, porque a questão motora fina dele é bem comprometida ainda. Mas é isso", relata a mãe.
Icterícia: tratamento nos primeiros dias de vida é importante
Saber que a icterícia pode se transformar em um caso grave é importante para evitar o kernicterus ou até mesmo a possibilidade de óbito por complicações da doença. É o que alertam os especialistas ao enfatizar a necessidade de não menosprezar a icterícia.
"O primeiro ponto é não menosprezar. E o segundo ponto é uma adequada orientação para os pais desses pacientes, com a equipe médica explicando e frisando muito a importância do tratamento dessa icterícia para evitar que aconteçam níveis altos de bilirrubina e levar ao kernicterus", enfatiza a neonatologista Romy Schmidt Brock.
Fátima Magalhães reforça o alerta da médica. "É muito difícil falar disso, porém, muito importante. Eu não sabia da gravidade da icterícia. Até alguns pediatras subestimam. Eu perdi meu filho por falta de informações e negligência. Ele não deveria ter saído do hospital sem fazer um exame de bilirrubina."
* A repórter Mariana Macedo de Melo sofreu uma paralisia cerebral decorrente de icterícia aos seis dias de vida. Hoje, aos 24 anos, recém-formada em Jornalismo, integrou a equipe de Focas Saúde do Estadão.