Como americano encontrou no Brasil e no vinho a fórmula para 'história ainda não contada'
Em Monte Belo do Sul, na Serra Gaúcha, Michael Scott Carter criou a primeira vinícola negra e celebra o vinho como instrumento de inclusão
Empresário americano Michael Scott Carter fundou uma vinícola em Monte Belo do Sul, RS, unindo culturas brasileira e africana, valorizando diversidade, inclusão e histórias pouco representadas na vinicultura nacional.
A vinicultura é capaz de romper fronteiras e aproximar pessoas de nacionalidades distintas. E foi assim que o amor pelos vinhos fez o americano Michael Scott Carter decidir comprar um terreno no bucólico e aprazível município de Monte Belo do Sul, que fica na Serra Gaúcha, a 143 km da capital Porto Alegre.
O vilarejo rural tem cerca de 2.500 habitantes e foi lá que Scott fundou sua vinícola, um pouco depois do período da pandemia. Nascido nos Estados Unidos, já foi proprietário de restaurante em Chicago e estudou Direito e Economia no Reino Unido. Foi casado com uma brasileira e tem dois filhos brasileiros. O propósito do empresário é trazer referências do solo nacional em seus rótulos, bem como aludir à cultura ancestral africana. Deste modo, a produção de Scott, lançada em novembro de 2024, é uma das primeiras do Brasil a ser integralmente elaborada por um homem negro.
Os nomes dos vinhos são pensados neste sentido, como o branco Ilé amò, que em iorubá, língua falada especialmente na Nigéria, na África Ocidental, faz referência à "Casa do amor" e aponta para o solo que acolhe a pureza das flores e frutos brasileiros, ou o rosé Ilé Amògo, cujo significado é "Casa da Prosperidade". A carta oferece também um vinho tinto, um tinto reserva. E o planejamento é lançar um espumante nos próximos meses. As garrafas custam entre R$ 150 e R$ 260.
Scott fala português com boa desenvoltura, mas sentiu-se mais à vontade para falar em inglês e explicar a aventura que vem sendo os últimos anos com a fundação da vinícola.
"O Brasil é a história de um povo tentando encontrar seu caminho em um lugar maravilhoso. E o que tentamos fazer com o nosso vinho é unir o País — pretos e brancos, norte e sul —, porque há divisões profundas aqui. Queremos ser esse denominador comum que aproxima as pessoas em torno de uma boa garrafa de vinho. E esperamos que as pessoas encontrem o amor de todas as formas possíveis", contou ele, em entrevista exclusiva ao Terra.
O produtor observa também as dificuldades que enfrenta para se estabelecer em um mercado competitivo e tradicional como o da Serra Gaúcha, uma vez que é a região que mais produz vinhos e espumantes no Brasil. Contudo, ressalta que, em alguma medida, existem dificuldades para todos e que muitas pessoas da comunidade o ajudaram. Para ele, ter protagonismo como um produtor de vinhos sendo um homem negro o permite contar uma história que ainda não foi contada.
"Eu não enfrentei nenhum desafio fora do comum. O desafio é ser novo em uma comunidade. Eu estou numa cidade de 2.557 pessoas --e o 56º e 57º sou eu e meus filhos. E assim que as pessoas passaram a nos conhecer, as portas simplesmente se abriram. Quando viram que eu era só um cara tentando fazer algo acontecer aqui, se abriram, amaram a história. Passaram a apoiar, a contribuir. Não todos, mas a maioria", disse, para depois complementar.
"E na frente do vinho, estamos tentando deixar claro que não somos iguais às outras vinícolas. Estamos colocando a história africana --como a italiana, a alemã, a polonesa-- no tecido do Brasil, porque a nossa história ainda não foi contada. E não estamos dizendo que é melhor. Nem que é, você sabe, extraordinária. Só estamos dizendo que todo mundo deveria estar nessa festa chamada vida. E, agora, estamos fazendo a nossa versão do vinho. É simplesmente isso. Para mostrar: este é quem somos, é isso que estamos fazendo. E qual a diferença entre vinícolas negras e brancas? É que a gente tem que mostrar para as próximas gerações o que é possível", contou o economista, fazendo questão de ressaltar que o mapa contido nos rótulos das garrafas comunicam "uma ponte entre culturas africana, brasileira e italiana para mostrar que o vinho une histórias, sabores e tradições".
O desafio maior, nas palavras de Scott é entrar em determinados nichos do mercado, pois é muito comum se deparar com entraves durante todo o conjunto de produção e vendas, tornando muito complexa a atividade de explicar ao público o porquê de determinados preços, já que não existe uma cadeia de distribuição direta. Assim, é preciso também explicar para os possíveis clientes o porquê da importância de consumir dos produtores locais.
"A gente precisa educar sobre por que é importante comprar. Porque, se você quer ser um empreendedor, você precisa de pessoas que comprem. Então tem que dizer: escuta, compre. Se você não pode comprar da gente todo dia — o que é natural, né, a gente entende — então pelo menos em uma ocasião especial, uma vez por mês, que a gente seja a escolha para aquele momento importante. Porque a gente precisa caminhar junto, como uma comunidade brasileira mais ampla, mas também como uma comunidade que vive as mesmas lutas".
Como meta para os próximos anos, o empreendedor americano estabelece a venda para o maior número de cidades brasileiras que conseguir, mas também mira o exterior a fim de virar uma potência global - a empresa já está presente no mercado americano, britânico e está prestes a ser lançada no continente africano. Ademais, Scott deseja ser exemplo, não só para os próprios filhos, mas para indivíduos que historicamente não detêm a hegemonia na liderança em determinados segmentos de negócios, como produção de vinhos.
"Mesmo sendo a primeira vinícola negra, cada pessoa tem uma história de crescimento, expectativas, escolhas — e queremos que isso seja uma experiência integrativa. A ideia é ser uma empresa de vinhos e bebidas competitiva globalmente, para que as pessoas possam dizer: 'sabe aquela empresa que começou no Brasil? É essa aí'. Tenho dois filhos meio brasileiros, meio americanos — ou, como eles mesmos dizem, 100% brasileiros, 100% americanos — e eles precisam ver como é construir algo, entender algo. Porque você não entende de verdade até ver alguém, como você, fazendo aquilo. É por isso que construímos uma empresa com o máximo de diversidade possível. Se eu não tivesse visto empreendedores na minha família, jamais teria imaginado ser um. E é isso que falta".
* O repórter viajou para Bento Gonçalves (RS) para participar da Wine South América (WSA) a convite do governo da Itália.