Resolução 487 do CNJ: hospital de custódia e tratamento psiquiátrico
Em 1956, a médica psiquiatra Nise da Silveira fundou a Casa das Palmeiras, marco importante na então incipiente luta contra os hospícios no Brasil e o esforço e o trabalho dessa grande psiquiatra alagoana deixou importantes marcas nos rumos da moderna psiquiatria.
A luta para oferecer alternativas a internação nesse tipo de "hospital" desaguou na lei 10.216/2001, também conhecida como Lei Antimanicomial, com objetivo de estabelecer uma nova política de saúde mental. De acordo com suas determinações incumbe ao Estado, com a participação da sociedade e da família, o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais.
Recentemente, a Resolução 487, de 15 de maio de 2023, do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, instituiu a "Política Antimanicomial do Poder Judiciário", com previsão de procedimentos para o tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial em situação de custódia, sejam elas investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto, e de diretrizes para assegurar os direitos dessa população.
Não se questiona, por óbvio, a importância dessa normativa no campo dos Direitos Humanos, até em razão da proposta de integrar de forma mais harmônica e efetiva as determinações da Lei Antimanicomial com os regramentos contidos no Código Penal e na Lei de Execução Penal.
Todavia, algumas reflexões sobre as consequências práticas da resolução, afastadas de qualquer posicionamento ideológico e de paixões que o debate de um tema dessa natureza inevitavelmente suscita, parecem oportunas.
A Resolução 487, ao estabelecer, em seu artigo 18, prazo de doze meses para a completa interdição e fechamento de todos os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, gera profunda preocupação no que concerne à segurança pública.
No processo penal, quando demanda penal julgada procedente em razão da demonstração da materialidade do fato criminoso e da prova de autoria por agente considerado inimputável, ou seja, incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de conduzir-se de acordo com esse entendimento, ele é absolvido impropriamente. Não lhe é imposta a expiação penal, reservada aos agentes imputáveis, mas, ao invés dela, o agente recebe medida de segurança. Além disso, existe, ainda possibilidade de aplicação de medida de segurança aos semi-imputáveis, quando ficar evidenciado, sempre com base em laudo médico, a necessidade de submissão do autor do delito a especial tratamento curativo.
O Código Penal prevê duas espécies de medida de segurança: (i) internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado, e (ii) sujeição a tratamento ambulatorial.
Todos os autores de delitos que venham a cometê-los em situação de transtorno e sofrimento decorrente de doença mental, deverão ter sua situação avaliada sob três diferentes óticas: da saúde, da assistência social e, também, da segurança pública. Isso porque todos são reconhecidamente autores de crimes e por essa razão cumprem a medida de segurança em Hospitais de Custódia e Tratamento, onde são internados mediante decisão judicial, passando por regulares avaliações para constatação de cessação da periculosidade.
Em razão da já mencionada determinação contida na já citada resolução, esses estabelecimentos deverão ser fechados a partir de maio de 2024, e seus internos transferidos para hospitais gerais públicos ou para suas residências, buscando tratamento por meios do SUS, Caps, Postos de Saúde, etc.
Note-se que estamos aqui a tratar de portadores de doenças ou transtorno mentais graves em situação de conflito com a lei penal e, no mais das vezes, autores de crimes também de extrema gravidade, tais como homicídios e estupros, por exemplo.
Surgem, então, alguns questionamentos: nem todos os hospitais públicos têm unidades de psiquiatria. Além disso, está presente o risco de se sobrecarregar ainda mais o SUS, em prejuízo da população em geral e dos próprios agentes sujeitos à medida de segurança. Questionável, também a conveniência do convívio de portadores de doenças mentais e autores de delitos de extrema gravidade com doentes menos severos em unidades de internação geral. Há, ainda, risco para os ex-internos, sujeitos a perseguição e retaliação, como ocorreu recentemente com o assassino em série "Pedrinho Matador".
Outra questão: esses cidadãos em cumprimento de medida de segurança teriam o necessário discernimento para seguir o tratamento recomendado, notadamente quando a família não tem condições de dar-lhes plena assistência?
Um dos argumentos, de extrema pertinência, aliás, a favor da desinstitucionalização de autores de crimes é de que tais pessoas são vítimas de uma violência institucional, quando merecem o mesmo tratamento destinado aos demais pacientes psiquiátricos.
No entanto, esse argumento perde a robustez diante dos dados que exporemos abaixo.
No Estado de São Paulo há três Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico: HCTP I de Franco da Rocha, HCTP II de Franco da Rocha e HCTP de Taubaté. A partir de dados obtidos junto ao sítio eletrônico da Secretaria de Administração Penitenciária, dois desses equipamentos passaram por reforma para ampliação e melhorias em 2019, sendo que a unidade II de Franco da Rocha trabalha especificamente em regime de desinternação progressiva, tendo por embasamento exatamente as diretrizes da Lei Antimanicomial.
Esses hospitais não apresentam superlotação e tampouco há notícia de maus-tratos ou tratamento desumano, intransitivamente inadmissível.
A lei Antimanicomial vem sendo aplicada e os internos nesses nosocômios vêm recebendo os cuidados adequados, observado o justo equilíbrio entre o tratamento digno a ser dispensado aos doentes mentais autores de crimes e a segurança da população.
Não se questiona, de outro lado, a necessidade de rigorosa articulação entre as instituições que atuam na área da Segurança Pública, bem como as áreas social e de saúde, com o estabelecimento de um protocolo de entrada para esses atendimentos a partir da audiência de custódia, assim como o constante acompanhamento desses indivíduos até a cessação de sua periculosidade e sua plena reintegração social.
Finalizando, de rigor haver um melhor ajuste no sopeso entre a segurança pública e o tratamento terapêutico devido, de sorte a preservar a integridade psicossocial da pessoa submetida a medida de segurança, sobretudo em face das vicissitudes e problemas inerentes a estrutura do SUS, sob pena da população custodiada vir a enfrentar maior situação de vulnerabilidade.
*Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner, procuradora de Justiça Criminal do Ministério Público de São Paulo, ex-corregedora-geral do MPSP e ex-presidente do Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNCGMPU)