O drama da crescente população de mulheres presas no Brasil
País é o terceiro do mundo que mais encarcera mulheres, cuja presença nas celas quintuplicou em 24 anos. Guerra às drogas está por trás da separação massiva de famílias.Foi dentro de uma cela que Ilda Nascimento descobriu a gravidez do terceiro filho. Em 2010, a então mãe solo de duas meninas acabara de ser presa pela segunda vez por tráfico de drogas. Sob escolta policial, ela gestou João Victor, deu-lhe à luz e cuidou dele no Carandiru por oito meses. Depois, assistiu ao seu bebê cruzar os portões São Paulo afora.
A separação de famílias está no centro do drama da população carcerária feminina, que quintuplicou nos últimos 24 anos no Brasil, segundo a última edição da Lista de Encarceramento Feminino Global, do Instituto para Pesquisa em Políticas de Crime e Justiça (ICPR, na sigla em inglês), associado à Universidade de Londres.
"O maior sofrimento lá dentro é o da mulher que fica sem os filhos, porque muitas presas são mães", conta Ilda, aos 46 anos, após dez anos no sistema prisional. "É saudade o tempo todo."
Com cerca de 50 mil mulheres sob tutela do Estado - incluindo regime fechado, outros regimes ou de caráter provisório -, o país é o terceiro com maior número de mulheres presas, atrás apenas dos Estados Unidos (quase 175 mil) e da China (pelo menos 145 mil).
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), o Brasil tem quase 32 mil mulheres em celas físicas, incluindo 195 gestantes e 91 lactantes. Em 2023, eram 27 mil.
Crianças sob cárcere
Atualmente, há 90 crianças encarceradas junto com as mães no Brasil, todas com no máximo um ano de vida, antes de serem retirados do contato materno. Tal como aconteceu com João Victor.
Sob a guarda da avó, ele passou a primeira infância achando que visitava a mãe no trabalho. "Um dia ele me disse: 'eu sei que aqui é a cadeia, porque te trancam quando eu vou embora,'" conta Ilda. Hoje longe das drogas, ela roda São Paulo de moto fazendo entregas. "Ele fez parte desta história."
Não foi até o menino ter completado sete anos que chegou a vez de Ilda também deixar a prisão, em 2017. Já as filhas mais velhas da paulistana, que a viram ser presa pela primeira vez aos 3 e 7 anos, eram então maiores de idade.
No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF) concederia habeas corpus coletivo para todas as gestantes ou mães de crianças até 12 anos ou de pessoas com deficiência presas preventivamente. A decisão beneficiaria ao menos 3,5 mil mulheres nos dois anos consecutivos, de acordo com levantamento do portal g1, em 16 estados e Distrito Federal.
Guerra às drogas
Associada à pobreza, à desigualdade e à dificuldade de acesso à Justiça, a guerra às drogas catapultou o massivo encarceramento de mulheres no país e no mundo.
"Desde os anos 2000, nós assistimos a um crescimento do número de mulheres presas globalmente num ritmo três vezes mais rápido do que o de homens presos," explica Catherine Heard, diretora do Programa Mundial de Pesquisa Prisional do ICPR. A iniciativa mantém a base de dados Resumo da Prisão Mundial, que acompanha estatísticas sobre a população carcerária no mundo.
Segundo especialistas, a Lei de Drogas de 2006 desembocou na criminalização massiva de negras, pobres e periféricas, ao eliminar a pena de prisão para o uso de drogas e endurecer a punição para o tráfico. Com fronteiras embaçadas para distinguir usuárias de traficantes, o resultado foi o enquadramento em larga escala do crime de tráfico. A lei não definiu por quantidades de drogas o porte para uso pessoal ou fins de comercialização.
"O sistema penal não está alcançando grandes organizações criminosas, mas, sim, mulheres que ocupam posições baixas na cadeia de venda," afirma Helen Baum, especialista do Programa Justiça Sem Muros, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Ela é também sobrevivente do cárcere. "O aprisionamento feminino no Brasil só existe por causa da política de drogas," completa.
Heard, do ICPR, argumenta que a disparada da população carcerária feminina no Brasil é também consequência do "fracasso geral em desenvolver qualquer alternativa à pena de prisão."
Dentre os listados pelo ICPR, os países com maiores aumentos das populações carcerárias femininas desde 2000 incluem ainda Guatemala (seis vezes), El Salvador (sete vezes), Indonésia (sete vezes) e Camboja (nove vezes).
Falta de itens básicos
Aproximadamente uma a cada três das brasileiras em celas físicas está no estado de São Paulo. Segundo estudo de 2018 publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os anos consecutivos à Lei de Drogas viram aumentar a incriminação por tráfico, em detrimento do uso, nos arredores da Cracolândia paulistana.
Foi este o caso de Helen, quando era residente do ícone do consumo de drogas no Brasil. Presa por tráfico em 2013, ela ficou três anos afastada do filho, então com 15 anos. Preferiu não deixá-lo conhecer a realidade depois dos portões que a cercavam.
Hoje, ela é pesquisadora e ativista pelos direitos das sobreviventes do cárcere brasileiro. No livro autobiográfico Quando arrancaram minhas asas, ela conta a vida na cela sete do Centro de Detenção Provisória (CDP) Feminino de Franco da Rocha.
"Temos problemas com a falta de alimentação adequada, de cuidado com a saúde mental e reprodutiva e de acesso a produtos de higiene", explica. "São os parentes que precisam mandam o 'jumbo' com estes artigos. Mas as mulheres são muito abandonadas pelas famílias."
Não raro desprovidas de redes de apoio, as mulheres em privação de liberdade tendem a receber menos visitas que homens. A solidão é uma das experiências mais comuns de ser mulher atrás das grades.
Um relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) descreveu no ano passado a estrutura da unidade prisional como insalubre. Também reuniu indícios de tratamento cruel, desumano e degradante para gestantes e bebês.
Investimentos necessários
À época da inspeção pelo MNPCT, realizada em 2023, dois terços das 729 presas no CDP Franco da Rocha eram pretas ou pardas, e mais de 90% era de solteiras. Quase metade não completara o ensino fundamental.
Para Heard, o Brasil precisa não só reduzir a população carcerária feminina, como também investir mais recursos no atendimento às suas necessidades específicas quando a prisão for inevitável.
"Infelizmente, as prisões femininas são simplesmente planejadas seguindo modelos de prisões masculinas," afirma. "Nós gostaríamos de ver algo muito diferente, incluindo unidades menores e mais oportunidades de estudo para as mulheres."
A Senappen não respondeu a um pedido de comentário pela DW sobre políticas em vigor ou elaboração para o tema.
Em dezembro, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei para tornar obrigatória a distribuição de produtos de higiene, como papel higiênico, absorventes íntimos, fraldas descartáveis e equipamentos infantis nas penitenciárias femininas.
Relator, o deputado Sargento Fahur (PSD), do Paraná, chamou a proposta de "desvirtuamento moral". O texto foi antes aprovado por duas comissões e aguarda a apreciação de outras duas e do Plenário.