Rivais, sunitas e xiitas convivem em paz em praia iraquiana
Duraid Adnan e Timothy Williams
Do New York Times
A algumas horas de distância de Bagdá, em meio ao vasto deserto do oeste do Iraque, surge uma visão que poderia compreensivelmente ser atribuída a uma miragem: uma longa praia arenosa na qual se vê milhares de pessoas nadando e dançando descalças sob o sol quente, completamente despreocupadas.
Um disc jockey - ele diz se chamar "Mr. DJ" - grita ao microfone, por sobre o som de dance music síria, e suas palavras são especialmente notáveis por parecerem tão corriqueiras. "O meu alô para todo mundo de Bagdá!", ele diz, em árabe.
A plateia reunida em torno dele grita em resposta. "Todo mundo de Adhamiya e de Sadr City que veio de Bagdá, mostrem seu pique!", grita Mr. DJ, em referência a dois bairros da capital iraquiana - o primeiro quase exclusivamente sunita, o segundo quase exclusivamente xiita.
Em resposta, os espectadores começaram a dançar energicamente ao redor dele, enquanto sunitas e xiitas pareciam desfrutar de um raro momento de alegria compartilhada.
É espantoso, mas verdadeiro. Pela primeira vez desde que irrompeu a guerra sectária, em 2006, o Iraque está desfrutando de uma temporada de praia.
A água do Lago Habbaniya, na província de Anbar, é lodosa, e hoje uma tempestade de areia bloqueou o sol. Pouca gente conta com ar condicionado ou eletricidade confiável, no país. E este mês centenas de iraquianos morreram nos violentos incidentes que continuam a acontecer em todo o país.
É por causa disso tudo, dizem os banhistas, que um dia na praia é tão importante. "Estou aqui para escapar - das bombas em Bagdá, do som dos geradores", diz Aya Alshemari, 22 anos, uma universitária que, a despeito de estar vestida em recatados jeans e camiseta, atraía os olhares de dezenas de banhistas do sexo masculino. "Estamos aqui para nos divertir. Não existe diferença entre sunitas e xiitas. Somos todos iraquianos".
A maioria das pessoas chega de carro e estaciona bem perto da água. E, porque estamos, afinal, no Iraque, cada veículo foi cuidadosamente revistado em busca de explosivos e cada visitante passou por revista pessoal para detectar o uso de possíveis coletes explosivos.
Naquele dia específico de agosto, porém, a única coisa daninha era o calor de 45ºC e a comida altamente calórica: kebabs de carne bovina e ovina, kibes fritos. Alguns jovens aproveitavam para consumir cerveja gelada, furtivamente.
O primeiro-tenente Uras Saad, oficial do exército iraquiano que responde pelo posto de segurança do lago, disse que não houve atos de violência na praia depois que ela foi reaberta, quando começou o verão.
Mas a área nem sempre foi calma assim. O Lago Habbaniya fica no coração do território sunita árabe do Iraque, e um ano e meia atrás a região era um baluarte da Al-Qaeda na Mesopotâmia, grupo insurgente que conduziu ataques brutais contra os xiitas em todo o país.
A história conturbada do país parece ter sido deixada para trás por um momento. Uma jovem usando uma camiseta preta e jeans acaba de sair da água. As roupas pesadas que veste provavelmente não são muito confortáveis para nadar, mas ela ainda assim está sorrindo alegremente ao emergir do lago.
Como a maioria das mulheres presentes, ela mostra de seu corpo apenas os pés. Há mulheres que entram na água usando os mantos tradicionais. A maioria dos homens mais jovens tiram as camisas, mas usam calções largos. "Eu gostaria de usar menos roupa, mas meus irmãos ficariam furiosos comigo", fiz Maha Abdul-Wahab, 23 anos, a jovem em questão.
A praia fica dividida em duas seções, uma reservada a famílias e a outra aos homens solteiros. Na seção familiar, fica a maioria das jovens, quase todas vigiadas atentamente por irmãos mais velhos. E por isso é a essa seção que o olhar dos rapazes postados na seção masculina retorna a intervalos regulares.
Caso um deles se aproxime demais da seção familiar sem que possa provar que tem direito de estar lá, policiais interferem e afastam o aventureiro. Mas apesar disso tudo, a praia do lago, como quase todas as praias, é um lugar em que rapazes e moças se encontram. E os intrépidos sempre dão um jeitinho.
Com o ar ganhando uma cor amarelada e uma aparência turva devido a uma tempestade de areia que sopra do deserto vizinho, um jovem esbelto que está na seção masculina, usando uma camiseta azul sem mangas e calções pretos, atrai o olhar de uma moça sentada na seção familiar.
Mr. DJ estava tocando "Al Agruba", do cantor iraquiano Hussam al-Rasam:"Mamãe, um escorpião me mordeu / Ah, mamãe, se você a tivesse visto / Deus a criou para ser bela / Um beijo dela / E tudo seria perfeito".
Depois de cerca de meia hora de flerte a distância, o jovem, Laith Ali, desenvolveu um plano.
Pediu a um homem sentado em uma caminhonete estacionada ali perto um pedaço de papel, no qual escreveu alguma coisa. Depois, caminhou vagarosamente pela praia, aparentemente despercebido de que estava se aproximando da seção familiar. Mantendo a cabeça baixa, ele evitou a atenção dos policiais distraídos.
Ele caminhou na direção da jovem, que estava olhando na direção oposta. E então, como que por acidente, derrubou o papel e se afastou. Por alguns minutos, nada aconteceu. Mas a jovem terminou por se levantar e caminhar por alguns metros, na direção da água. Enquanto o fazia, aproveitou para apanhar um pedaço de papel na areia.
Ela abriu o bilhete, leu e sorriu. O jovem observava de longe."Eu escrevi que ela era bonita", disse Ali, baixinho. "E anotei meu número de telefone no papel".
Tradução: Paulo Migliacci ME