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Europa

Opinião: A Rússia tem seus Ladas, espiões e um ditador

Infelizmente a Rússia também é o berço do Comunismo, uma das maiores tragédias da Humanidade

25 mar 2024 - 06h25
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Catedral de São Basílio, Moscou
Catedral de São Basílio, Moscou
Foto: Nikita Karimov / Unsplash

Salve, salve!!! Salve-se quem puder.

A Rússia continua na crista da onda, mas pelos motivos errados. É a boa e velha estratégia do “falem mal, mas falem de mim.”

O déspota Vladimir Putin passou da conta nas últimas “eleicões”, mesmo para os padrões russos. Tive um chefe nascido e criado em Lipetsk, berço da siderurgia soviética, que insistia em dizer “tudo isso não passa de mimimi dos americanos”. Ainda segundo ele “a Criméia sempre foi nossa, então não tem nada demais reconquistar o que antes nos pertencia”.

Eu devolvia dizendo que Portugal também poderia clamar pela reconquista do Brasil já que foram os “descobridores” e que Pindorama sempre pertenceu à Coroa Portuguesa. Fazia-se um silêncio na mesa...

Com a Ucrânia a lógica do Putin é a mesma. A região sempre fez parte do Império Russo e por isso, naturalmente, deverá voltar ao seio da Mãe Rússia. Os ucranianos conquistaram a independência após o colapso da Uniao Soviética em 1991, mas antes disso o país era habitado por polacos, lituanos e cossacos, estando dentro do Império Austro-Húngaro e Russo.

O artigo já começou e você ainda não deu play nessa playlist de música eletrônica. São as melhores em alta rotação nas carrapetas russas no momento. Imagine o Putin soltando o esqueleto na pista com gelo seco até o pescoço e uma gravata amarrada na testa.

Mãe Rússia: Um país fantástico

Se tiver que escolher entre Moscou e São Petersburgo, prefiro a segunda. É a mesma disputa entre São Paulo e Rio. Uma é a megalópole cinza de trânsito infernal, vários mundos entrelaçados e centro dos negócios. A outra é arte, cultura, o jeitinho russo, um museu de cair o queixo, o Hermitage, e pano de fundo das peripécias de diversas personagens de Fiódor Dostoiévski.

Os quarteirões russos são gigantescos, tem uns 300 metros de comprimento. Andar a pé ali é fria, literalmente. Os Ladas estão por toda parte, de todas as formas, cores e estados de conservação. São uma instituição russa, o carro mais amado e idolatrado do mundo depois dos Trabants. Ainda terei um.

Escrever sobre a Rússia sem falar dos Ladas é impossível. O melhor carro já construído é russo! Me desculpem os Land Rovers, as Ferraris, Aston Martins e Mercedes da vida. Onipresente, amado e odiado, pau pra toda obra, coração de mãe, indestrutível, imortal e imparável. De manutenção fácil e barata, transportando pessoas, cargas, cachorros, galinhas, feno, arroz, noivas, emoção, choro, riso, drama, comédia, desespero, pressa, curtição e prazer desde que foi criado.

As matrioskas se espalham pelas barraquinhas nas ruas ao lado de cafés chiques e restaurantes decadentes frequentados por um povo sofrido e trabalhador, mas simpático e atencioso.

O frio é um senhor implacável regendo o destino de milhares de Vidas sem misericórdia. Penetra a alma, ataca o fígado e turva a vista. Só mesmo uma borscht, a tradicional sopa de beterraba, e muita vodka na cachola pra aguentar.

Se quer ver riqueza, pujança e exagero visite os palácios de Pedro e Catarina em São Petersburgo. Reza a lenda que a famosa sala de âmbar roubada pelos nazistas ainda não foi encontrada. A que está lá é uma réplica. Duvido muito e aposto que Putin a achou faz tempo mandando instalar a original em sua dacha na beira do Mar Cáspio.

O alfabeto cirílico não ajuda muito, mas quem precisa dele para apreciar as belezas de cada estação de metrô moscovita ou a Catedral do Sangue Derramado em São Petersburgo? O Kremlin tem seus tesouros, Lenin está ali ao lado embalsamado e a Catedral de São Basílio impressiona qualquer um. Passamos na porta do Bolshoi, mas era férias e infelizmente estava fechado

A literatura russa é talvez a mais rica, densa e profunda do mundo, sem exagero. Pushkin, Dostoiévski, Tolstoi, Gorki, Tchekhov, quer mais?

Música clássica então? Tchaikovsky, Prokofiev, Shostakovich, Stravinsky e Rachmaninov formam um escrete de dar inveja a austríacos, italianos, franceses e alemães.

Infelizmente a Rússia também é o berço do Comunismo, uma das maiores tragédias da Humanidade. Lenin, Marx e Engels que me perdoem, mas quem ainda defende esse sistema indefensável é mal informado, ignorante, ou ambos. É simplesmente o sistema político e econômico que mais matou na História. Somente os espurgos de Stalin, o Holodomor, deplorável genocídio ucraniano, e o “Grande Salto para Frente” de Mao na China mataram dezenas de milhões de pessoas.

Na Ucrânia, a grande maioria morreu de fome graças ao “brilhante” programa de coletivização da agricultura onde o Estado juntou as terras e rebanhos dos camponeses em fazendas coletivas. Quem resistia ao programa era preso e deportado para um gulag na Sibéria. Como os camponeses das fazendas coletivas não podiam receber os grãos até completarem suas inatingíveis quotas de produção, a fome se alastrou de forma generalizada.

Apesar de tantos legados ao mundo e criações magistrais que perduram até hoje, o ser humano também é capaz de pensar somente na destruição. Nessa sanha pelo poder puro e simples, para que a Rússia volte a ter a relevância que já teve na história, Putin foi capaz de criar uma guerra em pleno 2022.

E o fim está longe. Lamentavelmente.

Pra ver e ler

FILME: Stalker (1979) - Andrei Tarkovski. Um mergulho profundo na alma.

Esse é um dos filmes que mais mexem com o espectador. É soturno, misterioso, filosófico, lento. O diretor Andrei Tarkovski ficou famoso pela profundidade intelectual e pelo uso dos planos longos com poucos cortes. Os famosos planos sequência quando a câmera vai seguindo os personagens como se fosse alguém escondido observando a cena. A câmera de Tarkovski é o verdadeiro "stalker".

No filme, um escritor e um cientista desejam entrar na “Zona”, uma área mística onde as leis da física não se aplicam e o local é vigiado pelo governo. Apenas os “stalkers” conseguem adentrá-lo e por isso, o professor e o cientista contratam um deles para guiá-los.

Veja o filme completo disponibilizado pelo Mosfilm, maior e mais antigo estúdio de cinema da Rússia. A película foi restaurada e está disponível em alta resolução com legendas.

Já assisti duas vezes e penso seriamente numa terceira sessão.

LIVRO: The Spy and The Traitor – Ben Macintyre (2018). Um thriller de espionagem imperdível.

Uma história real e eletrizante durante a Guerra Fria com um espião da KGB infiltrado no Ocidente.

É um dos melhores livros sobre espionagem que já li. O espião duplo Oleg Gordievsky da KGB mudou sozinho o curso da Guerra Fria e da História.

Sozinho é modo de dizer já que apesar de estar muitas vezes só em sua jornada dupla, às vezes tripla, ele nunca trabalhou sem a ajuda de outras pessoas.

Gordievsky nunca concordou com a filosofia do Comunismo. Filho de um ex-agente e tendo como inspiração o irmão mais velho na KGB sua escolha foi natural. Vivendo três anos na Dinamarca como espião disfarçado de diplomata em Copenhague, ele experimentou a liberdade de expressão, a música, literatura, cultura, segurança e bem estar social de um país capitalista desenvolvido. Isso mudou de vez suas crenças e filosofia de vida.

Lá foi recrutado pelo serviço secreto britânico, o MI6, e começou a trabalhar para o Ocidente transmitindo valiosas informações sobre como funcionavam as mentes comunistas e todo o aparato de espionagem e vigilância na antiga União Soviética, que chegou a ter no auge da Guerra Fria mais de 1 milhão de agentes da KGB infiltrados pelos quatro cantos do mundo.

Oleg conseguiu a façanha de subir alto na hierarquia e foi parar, adivinhem... em Londres. Melhor, impossível! Quanto mais subia, mais importantes eram as informações que tinha acesso e transmitia aos britânicos.

Ben Macintyre descreve em detalhes todo esse período, os segredos revelados, e a espetacular operação de resgate de Oleg retirado da URSS pelo MI6 quando foi chamado de volta.

Sua importância e influência foram tão grandes que ele instruiu a então Primeira Ministra britânica Margaret Thatcher sobre como deveria se portar durante o funeral de Andropov e até mesmo qual traje deveria usar! Oleg basicamente ditou a agenda de ambos os lados do encontro entre Thatcher e Gorbachev, na época uma estrela em ascensão no Partido Comunista.

Cheguei no final do livro faltando quatro capítulos pra acabar. Só larguei às 3h da matina porque foi impossível parar. A tensão cresce e o autor descreve de forma magistral o desfecho da vida dupla de Oleg Gordievsky.

Eletrizante e muito bem escrito.

Não sei se saiu no Brasil, mas se você lê em inglês não pode perder.

(*) Pedro Silva é engenheiro mecânico, PhD em Materiais, vive em Viena na Áustria, não pensa em voltar tão cedo à Rússia, apesar das belezas do país, e escreve semanalmente a newsletter Alea Iacta Est.

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