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Ucrânia e a tragédia de um país: visão de quem esteve lá

28 fev 2024 - 06h15
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Mariupol com o Mar de Asov ao fundo
Mariupol com o Mar de Asov ao fundo
Foto: Pedro Silva / Arquivo Pessoal

Salve, salve!!! Salve-se quem puder.

A Ucrânia é uma Rússia empobrecida onde quanto mais ao leste, mais pobre. Mariupol fica pertinho da complicada região de Donetsk, rumo à imensidão das estepes russas. Rebeldes separatistas apoiados por Putin mantinham constante o clima bélico e existia até mesmo uma fronteira interna para entrar e sair dali. Bons tempos...

Estive nesta cidade completamente destruída pela guerra insana que já passa de 2 anos. Mariupol fica nas margens do Mar de Asov, parte do Mar Negro. O time de futebol mais famoso da região é Shakhtar Donezk onde vários jogadores brasileiros ainda tentam a sorte.

Pra acompanhar o artigo, esta playlist com a fina flor do ótimo pop ucraniano. Te convido a sair desse casulo ditado por canções dos EUA e Inglaterra e começar a se aventurar por outros países e idiomas. Não vai se arrepender. O mais do mesmo cansa.

Khrystyna Soloviy é uma famosa cantora no país, celebridade local. Surpreenda-se com a qualidade das músicas e melodias. Das letras não posso dizer o mesmo.

Aumente o som e aproveite!!!

Mariupol e o cotidiano do ex-homem soviético

O menininho no ônibus do aeroporto pulava no pescoço do avô e a avó o enchia de beijos após tanta espera e pandemia. Pelas ruas e avenidas de Mariupol, os vira-latas dormiam em tampas de bueiro se aquecendo no inverno.

Na praça principal a Vida seguia no parquinho forrado pelas folhas coloridas do outono. As mamas e omas em seus casacos surrados faziam compras do dia a dia levando quitutes para a borsch do jantar. Operários vagavam na neblina rumo à usina guiados apenas pelas luzes dos postes. Chegavam em seus Ladas alegóricos e bem decorados, com todas as cores, estilos e estados, alguns caindo aos pedaços, outros limpos e semi novos destoando do ambiente.

A fumaça e o cheiro metálico estavam por toda parte. Na usina, a sensação era de estar dentro daquele vagão misterioso adentrando a fábrica abandonada no filme “Stalker” de Tarkovski. O som da passagem dos vagões sobre os trilhos era idêntico.

Fui apresentado a um “indiano”. Falei sobre o Brasil e a Áustria e perguntei como é que um cara da Índia foi parar na Ucrânia. Ele me contou de onde vem: Criméia. Disse que lá a aparência das pessoas é assim, parecem indianos mas não são. Com o bigodinho dele a semelhança era maior ainda. Pedi desculpas e perguntei qual é a lógica da ocupação russa.

A Criméia de hoje é uma região existente somente nos livros de História. Foi ali em Yalta em fevereiro de 1945 que a paz do pós Segunda Guerra na Europa foi selada. Stalin saiu vitorioso após várias imposições criando novas fronteiras e desenhando a Cortina de Ferro.

Em 1946, o próprio Churchill reconheceria: "De Szczecin, no Mar Báltico, a Trieste, no Mar Adriático, transcorre uma cortina de ferro pelo continente. Por trás desta linha estão todas as capitais da Europa Central e do Leste Europeu. Todas as cidades e suas populações estão sob influência soviética. Os acertos feitos em Yalta foram vantajosos demais para os soviéticos. Mas estas decisões foram tomadas numa época em que ainda não se sabia que a guerra não duraria nem até o fim de 1945, num momento em que achávamos que o conflito com o Japão persistiria pelo menos 18 meses após o final da guerra com a Alemanha".

Meu novo amigo me contava que a Criméia, de onde Sebastopol é hoje a principal cidade, deveria ser devolvida à Rússia em 2050. A população dessa região, em sua ampla maioria, utiliza o idioma russo e é mais ligada a Moscou do que propriamente a Kiev. Putin apenas se antecipou e passou a mao nesta península que liga o Mar Negro ao Mar de Asov e as rotas comerciais da regiao. Além da importância econômica, está numa posição vantajosa militarmente.

Pra matar a fome e repensar esta aula de História, nada melhor seria do que um churrasco do Turcomenistão feito na brasa e na hora. A sopa rica e saborosa, com carne e macarrão grosso alimentava o corpo e esquentava a alma. Mesinhas de boteco simples, um pão enorme e redondo, a bela chaleira exalando o perfume de ervas e um balcão que poderia ser no interior de Minas Gerais, mas estávamos ao lado da região separatista de Donetsk.

Nada disso existe mais. Mariupol foi riscada do mapa e agora, assim como a Criméia, só existe nos livros de História. Na última vez em que estive lá, ao fazer o check-out, recebi um voucher do hotel pois havia pago uma diária a mais. Segurei esse erro na reserva por um tempo na esperança de poder usá-lo.

Sei que o menininho já não pula mais no pescoço do avô, pois ambos morreram nos escombros de um prédio atingido por um míssel russo. Os cachorros evaporaram literalmente das ruas, os Ladas viraram fumaça, a mesma que obliterou uma das maiores siderúrgicas da Europa.

Uma das poucas certezas que tenho na vida é de jamais voltar a Mariupol.

Pra ver e ler

FILME: Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom (2015) – Jewgeni Afinejewski. A luta de um povo pela Liberdade.

Todos que se dizem lutar pela democracia e liberdade deveriam assistir esse documentário disponível no Netflix.

Os protestos em Kiev começaram e tiveram seu ápice quando o então presidente Viktor Yanukovich recusou um acordo com a União Europeia para ampliar as relações do país com o bloco ocidental. Seria o primeiro passo para uma futura entrada da Ucrânia na UE.

Essa decisão foi diretamente influenciada pela Rússia, que não via com bons olhos esse acordo, já que a Ucrânia estreitaria seus laços políticos, econômicos e sociais com a Europa Ocidental. Pelo país passam os gasodutos com o gás natural que aquece a maioria dos lares europeus no inverno.

Indicado ao Oscar em 2015, o documentário mostra a história de cidadãos comuns enfrentando a brutal tropa de choque controlada pelo então presidente da Ucrânia, Yanukovich, apoiado por Vladimir Putin.

Uma miríade de ativistas, artistas, babushki embrulhados em lençóis, padres barbudos, senhoras idosas, aposentados e jovens estudantes confirma que o povo ucraniano de todas as esferas e tipos participou do levante da Praça Maidan.

Durante 93 dias o que começou como manifestações pacíficas de estudantes se tornou uma revolução violenta.

Percebendo a covardia da tropa de choque do presidente que espancava sem dó nem piedade a população civil, grupos de ex-combatentes entram nos protestos ensinando aos manifestantes como se defender com escudos e armas improvisadas e técnicas militares de defesa. Mercenários são contratados pelo Presidente e se infiltram na massa tentando quebrar o movimento por dentro.

A cena da população cercando a praça Maidan e bloqueando a entrada do Bope ucraniano é uma aula de desobediência e resistência civil.

O realismo das imagens, filmadas com câmera na mão por quem estava na linha de frente do combate, é chocante. Um povo guerreiro que deveria servir de exemplo a outros países.

LIVRO: Contos de Odessa, Isaac Bábel (1924)

Odessa na Ucrânia é uma cidade portuária no mar Morto também chamada de a Marselha da Rússia.

No início do século 20, Odessa fervilhava de marujos, prostitutas, comerciantes, oficiais do governo, minorias, estudantes e a bandidagem. Isaac Bábel nos leva pelas ruas de sua infância mostrando a pobreza, brigas familiares, primeiros amores, os bandidos folclóricos e poderosos, e o cotidiano da comunidade judaica da cidade.

Os contos quase jornalísticos registram a vida na cidade graças ao seu olhar cinematográfico e a prosa nua e crua.

Não é um livro tão fácil, apesar da linguagem corriqueira e dos fatos cotidianos. As descrições de cenas ou pessoas são magistrais, como:

"Calçava sapatos de homem, usava um vestido laranja, um chapéu cheio de passarinhos e sentou num banquinho. O anoitecer ondulava por cima do banquinho, o olho cintilante do pôr do sol caía no mar, atrás de Peréssip (bairro de Odessa), e o céu estava vermelho como um dia vermelho no calendário".

Conheci Isaac Bábel graças ao Rubens Fonseca no livro “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”. O escritor aparece durante a intrigante história de um cineasta fracassado no Rio.

O escritor judeu soviético nascido justamente em Odessa foi fuzilado durante os espurgos stalinistas no final da decada de 1930.

(*) Pedro Silva é engenheiro mecânico, PhD em Materiais, vive em Viena na Áustria, esteve quatro vezes em Mariupol, a última em Outubro de 2021 e escreve semanalmente a newsletter Alea Iacta Est.

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