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Europa

Após atentado, Bélgica discute papel da Religião nas escolas

País está dividido entre manter a tradição educacional, adotar o modelo francês que oferece apenas aulas de Cidadania ou adicionar a nova disciplina ao currículo escolar

29 jan 2015 - 17h11
(atualizado às 17h25)
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Criança belga participa de marcha
Criança belga participa de marcha
Foto: Viviane Vaz / Especial para Terra

Depois dos recentes ataques terroristas em Paris realizados por radicais islâmicos da Al-Qaeda e do EI, além das ameaças desmanteladas pela polícia belga em Bruxelas e Verviers, a Bélgica discute agora o que fazer com o ensino de Moral, Filosofia ou Religião nas escolas. Na capital belga (Bruxelas) e na Valônia (região sul da Bélgica), a coalizão de poder entre os partidos Socialista (PS) e o Centro Democrata Humanista (CDH) estuda instaurar um curso comum de Educação para Cidadania em 2016 nas escolas públicas a partir do primário. O governo está preocupado em melhorar a integração social em cidades onde residem não só belgas flamengos (de língua holandesa) e valões (de língua francesa), mas também imigrantes e refugiados de todos os continentes.

Na Bélgica, seja na escola pública ou particular, crianças e adolescentes estudam pelo menos duas horas por semana de Moral, Filosofia ou Religião (catolicismo, protestantismo, islamismo ou judaísmo). O país se encontra agora bastante dividido entre manter a tradição educacional; adotar o modelo francês que oferece apenas aulas de Cidadania; ou adicionar a nova disciplina ao currículo escolar.

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Uma pesquisa realizada pela Federação das Associações de Pais de Educação Oficial (Fapeo) com diretores, professores e pais indicou que 54% dos entrevistados não apoiam o fim de aulas de Religião, Moral e Filosofia. Ao mesmo tempo, 54% aceitariam trocar esses cursos por outro de formação cidadã. A ministra para Educação na Valônia, Joelle Milquet, se posicionou contra acabar totalmente com as aulas de Moral, Filosofia ou Religião. "O problema são os extremistas. Não são as religiões", afirmou.

Charge do belga Kroll ilustra o debate sobre ensino religioso na Bélgica
Charge do belga Kroll ilustra o debate sobre ensino religioso na Bélgica
Foto: Charge de Kroll / Reprodução

Tradução da charge de Kroll:

- Senhor diretor, meus pais me colocaram em Moral, mas eu quero assistir Religião. Mas não sei qual.

- Senhor, eu creio que não creio mais. Posso trocar?

- Senhor, posso ir ver como é com os muçulmanos?

- Senhor, por que são sempre os judeus que temos aulas no quarto andar?

A professora de História e de Religião, Ariane Ruyffelaere, avalia que as aulas de Religião já incluem métodos de incentivar a convivência e o respeito para a vida em sociedade e receia que dividir o currículo escolar com uma hora para Cidadania e uma hora para Religião ou Filosofia dificulte o trabalho dos professores. "É um longo caminho fazer o jovem refletir e evoluir, escolher o que realizar como atividade para fazê-los compreender e avançar", afirma ao Terra.

Ariane exemplifica com um trabalho realizado em sala de aula com duas alunas da sétima série que viviam brigando. Uma era muçulmana, cuja família provinha da Turquia; a outra era cristã, com origem da Armênia. A belgo-turca não reconhecia o genocídio dos armênios (ocorrido entre 1915 e 1923) e a colega armênia participava de uma ONG que luta por esse reconhecimento. Ariane propôs que as duas lessem uma matéria de jornal sobre a recente aproximação de turcos e armênios e argumentassem intelectualmente, sem ofensas. Ao fim da atividade, a belgo-armênia disse à de origem turca: "Você entende agora? Meus bisavôs foram mortos por gente do seu país". E a belgo-turca respondeu: "Sim, mas veja, não fui eu que fiz isso a sua família". "A atividade em classe permitiu fazê-las pensar além de um processo de identificação (comunitária) e se aproximar da realidade e do sofrimento da outra. Finalmente os insultos terminaram", conta Ariane.

Seção sobre Religião em biblioteca pública de Bruxelas
Seção sobre Religião em biblioteca pública de Bruxelas
Foto: Viviane Vaz / Especial para Terra

A psicopedagoga belga, Catharina S., trabalha em uma escola de Bruxelas onde 90% dos alunos são de famílias imigrantes do Marrocos, Turquia e inclusive do Brasil. Ela opina que o ensino sobre tolerância e respeito à diversidade deve fazer parte da rotina de pais e professores e não se restringir apenas às aulas de Religião ou de uma futura disciplina de Cidadania. "O desafio da integração está presente no dia-a-dia, especialmente entre as crianças --que tendem a reproduzir o discurso dos pais", defende. Catharina conta que, certa vez, uma aluna do Jardim de Infância, filha de pais brasileiros cristãos, levou pão com presunto para o recreio e as crianças muçulmanas fizeram caretas, dizendo-lhe que o presunto era sujo. "Tivemos que explicar que existem diferentes formas de se alimentar --o que parece ruim para um, pode parecer bom para o outro", exemplifica.

A psicopedagoga costuma organizar atividades entre pais e professores. "Muitas vezes precisamos lembrar que algumas problemáticas surgem não por uma questão de cultura ou religião, mas pela personalidade e caráter de cada um", destaca. Ariane defende também as parcerias da escola com a família. "Os pais de hoje que deixam os filhos com a televisão ou com a internet, sem conversar sobre os principais temas em casa, não estão formando a consciência dos filhos", alerta.

Discussão na internet

Em um debate online realizado pelo jornal belga Le Soir acompanhado pela reportagem do Terra, a maioria dos internautas defenderam a manutenção das aulas de Religião. "A ausência de curso de Religião na França tornou a situação melhor  lá do que aqui na Bélgica?", questionou Antoine.  "Os jovens que se radicalizam o fazem em família, entre amigos,  pela internet ou televisão; a culpa não é da educação na escola", completou. "O materialismo consumista não tem nada a oferecer", defendeu Mélusine.

O leitor Sali considerou um absurdo suprimir os cursos de religião "precisamente em um mundo que carece de significado". "Talvez aqueles terroristas se deixaram arrastar pelos discursos radicais e anti-humanistas justamente porque não tiveram aulas de Religião, onde teriam aprendido as bases de paz, tolerância, abertura e respeito para com os outros", argumentou.

Por outro lado, o jovem Nimu, de 22 anos, disse preferir que se ensine mais História das Religiões do que Religião. "O curso deve ser primeiro informativo, pois ajudará os alunos a construir melhor as suas opiniões em relação a outras culturas, principalmente na adolescência. E de qualquer forma, toda religião se baseia na ideia de respeitar o outro, que é o que está faltando de verdade hoje em dia", concluiu.

Fonte: Especial para Terra
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