Rio expõe ferida aberta da violência urbana e contradições do Brasil às vésperas da COP30
Enquanto moradores do Rio de Janeiro recolhiam corpos nas favelas, após a operação policial que deixou pelo menos 119 mortes, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou nesta quarta-feira (29) estar "profundamente preocupado" com o número de vítimas, segundo seu porta-voz. O caso chama atenção internacional às vésperas de um grande evento como a COP30, a Conferência da ONU sobre o Clima, que começa em 10 de novembro.
Enquanto moradores do Rio de Janeiro recolhiam corpos nas favelas, após a operação policial que deixou pelo menos 119 mortes, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou nesta quarta-feira (29) estar "profundamente preocupado" com o número de vítimas, segundo seu porta-voz. O caso chama atenção internacional às vésperas de um grande evento como a COP30, a Conferência da ONU sobre o Clima, que começa em 10 de novembro.
"O secretário-geral está profundamente preocupado com o grande número de vítimas. Ele ressalta que o uso da força em operações policiais deve estar em conformidade com as normas do direito internacional e os direitos humanos. Guterres pede às autoridades que conduzam uma investigação rápida", disse o porta-voz Stéphane Dujarric a jornalistas.
No Brasil, o presidente Lula também disse estar "chocado" com o número de vítimas.
A poucos dias de sediar a conferência climática da ONU, em Belém, na Amazônia, o Brasil se depara com uma "dura realidade", relatam jornalistas internacionais.
O site australiano ABC, entre diversos outros veículos estrangeiros, destacou que a polícia carioca tem feito operações de larga escala contra o crime organizado em períodos que antecedem grandes eventos no Rio de Janeiro, cidade que sediou os Jogos Olímpicos de 2016, a Cúpula do G20, em 2024, e dos BRICS, em julho, mas que não "miram" nos "verdadeiros mandantes".
Na semana que vem, destaca o site, o Rio vai sediar o C40 Global Summit, encontro de prefeitos sobre mudanças climáticas. Convidados internacionais acompanham as notícias pela imprensa e afirmam "temer o que encontrarão".
O jornal português Expresso explicou aos leitores a origem do Comando Vermelho no Brasil: "Do grupo Falange Vermelha — que se regia sob o lema "Paz, Justiça e Liberdade" e que esteve na origem da atual organização criminosa — faziam parte presos políticos e outros detidos por crimes comuns. O grupo criminoso nasceu do convívio entre estes presos que combatiam juntos o regime autoritário e nacionalista, que vigorou entre 1964 e 1985", publicou.
Operações policiais em favelas como a que deixou mais de 100 mortos na terça-feira nunca "diminuíram o ritmo de expansão" dos cartéis de drogas no Rio de Janeiro, analisa a socióloga brasileira Carolina Grillo, especialista em crime organizado.
Em entrevista à AFP, ela explicou que as autoridades locais têm se apoiado "há décadas em operações policiais espetaculares", uma estratégia "ineficaz e cruel" que se mostrou "incapaz de conter a expansão territorial de grupos criminosos", segundo a coordenadora do Grupo de Estudos sobre Novas Ilegalidades (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
"A política de incursões armadas da polícia nas favelas só agravou a situação. As prisões em massa aumentam ainda mais a influência das facções, já que elas controlam os presídios. No entanto, operações que resultam em muitos mortos e detidos costumam gerar impacto eleitoral positivo, diante de uma população mal informada que acaba acreditando em uma estratégia ineficaz e cruel", avaliou Grillo.
Crime organizado
As operações realizadas na terça-feira contra o tráfico de drogas no Complexo da Penha e no Complexo do Alemão, grandes favelas na zona norte da cidade, demonstram o poder do crime organizado no Brasil, levantando sérias questões sobre os métodos policiais empregados.
Nesta quarta-feira, dezenas de corpos foram recolhidos por moradores em uma mata no topo da favela e colocados perto de uma das principais vias de acesso ao Complexo da Penha. As imagens repercutiram em muitos países e nas redes sociais.
"O cheiro de morte era insuportável", observaram jornalistas da AFP.
No local, era possível ver o corpo decapitado de um homem e de outro completamente desfigurado. Alguns moradores denunciaram as mortes como "execuções".
"O Estado do Rio veio perpetrar um massacre. Isso não foi uma operação; eles vieram diretamente para matar", disse uma mulher à AFPTV, com a mão cobrindo o rosto de um jovem, cujo corpo estava coberto por um lençol verde. "Muitos foram mortos com um tiro na nuca, um tiro pelas costas", disse Raull Santiago, um ativista que mora no bairro.
Os corpos foram então colocados em sacos para cadáveres e levados ao Instituto Médico Legal (IML).
Após anunciar cerca de sessenta mortes na terça-feira, as autoridades do Rio divulgaram um novo balanço, ainda provisório, de 119 mortos: 115 suspeitos de crimes e quatro policiais.
Por sua vez, a Defensoria Pública, órgão do estado do Rio de Janeiro que presta assistência jurídica aos mais vulneráveis, contabilizou pelo menos 132 mortos.
Após mais de um ano de investigação e 113 prisões, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, de direita, considerou a operação um "sucesso", conforme declarou à imprensa. Ele defendeu a abordagem repressiva da polícia e afirmou que as únicas "vítimas" foram os policiais mortos, refutando a alegação de que inocentes teriam morrido.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, disse que o governo federal em Brasília desconhecia a operação.
O presidente Lula convocou vários de seus ministros em Brasília, nesta quarta-feira. Uma delegação de seu governo é esperada no Rio de Janeiro para uma "reunião de emergência" com o governador.
A importância das ONGs
Numerosas condenações internacionais se seguiram aos eventos de terça-feira. O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse estar "horrorizado" e pediu "investigações rápidas".
Mais de 30 ONGs, incluindo a Anistia Internacional, afirmaram que a cidade foi mergulhada "em um estado de terror" por essa ação policial.
A RFI conversou com a professora de yôga Letícia Portella, que durante vários anos deu aulas nas favelas cariocas e hoje, mesmo morando na Europa, participa de uma rede de apoio para ajudar associações beneficentes em comunidades atingidas pela violência urbana.
"Como alguém que deu aulas em uma favela do Rio de Janeiro e que hoje atua como líder conectando projetos, ONGs e pessoas, acompanhei a operação policial de ontem com uma mistura de tristeza e reconhecimento, porque, infelizmente, a violência que agora ganha destaque na mídia é parte do cotidiano de muitos territórios onde trabalhamos há anos", diz.
Durante o tempo em que lecionou na favela, ela viu como o medo e a insegurança afetam profundamente o desenvolvimento das crianças e a vida comunitária. "A rotina escolar é atravessada por incertezas, aulas interrompidas por tiroteios, alunos que não conseguem chegar porque o caminho ficou perigoso e, mesmo assim, há uma resistência incrível, uma força que insiste em seguir", continua.
Ela destaca a importância das ONGs como referências locais. "Elas são o elo que mantém viva a esperança e a possibilidade de transformação."
Até então, a intervenção policial mais letal da história brasileira havia ocorrido em 1992, quando 111 detentos foram mortos durante a repressão de uma rebelião na prisão de Carandiru, perto de São Paulo.
Na terça-feira, grande parte do Rio de Janeiro, cidade que atrai milhões de turistas todos os anos, estava em completo caos. As escolas suspenderam as aulas, o transporte público foi interrompido e milhares de moradores ficaram sem conseguir voltar para casa. A vida na cidade retorna gradualmente ao normal nesta quarta-feira.
Com AFP