Falta de dados prejudica gestão do ensino público e abre caminho para expansão de escolas cívico-militares
Mesmo descontinuado, Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) segue ativo em alguns estados, apoiado nas legislações locais.
Apesar de o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), lançado em 2019, ter sido oficialmente encerrado em 2023, o modelo continua ativo e em expansão em alguns estados e municípios brasileiros. Essa continuidade se apoia em legislações locais, convênios com forças de segurança e na expectativa de parte da população de que a presença militar possa responder a problemas como violência, indisciplina e evasão. Os dados do Ministério da Educação mais recentes sobre o tema registravam 202 escolas vinculadas ao programa e cerca de 120 mil estudantes atendidos em 2022. Hoje, com a descentralização, o número depende da soma de iniciativas estaduais e municipais, já que não há base unificada que concentre essas informações.
A disseminação dessas escolas não é uniforme. Estados como Paraná, Goiás e Rio Grande do Sul concentram boa parte das unidades, impulsionados por leis específicas e por governos que apresentam a militarização como solução rápida para problemas complexos da educação pública. Essa expansão fragmentada, sem padronização nacional ou avaliação independente, permite que um modelo centrado na disciplina, e não na pedagogia, se consolide sem que sua eficácia seja examinada a partir de parâmetros educacionais consistentes.
Escassez de dados e fragilidade de gestão
O cotidiano das escolas públicas brasileiras ajuda a entender por que propostas de militarização encontram terreno fértil. Professores enfrentam turmas superlotadas — muitas vezes com 40 alunos ou mais — e acumulam funções que extrapolam o ensino, atuando como mediadores, assistentes sociais e promotores de saúde mental. Sem respaldo técnico e com formações que não dialogam com a complexidade do cenário escolar, muitos desenvolvem quadros de exaustão e desmotivação, além de outras alterações da saúde física e mental. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabelece obrigações claras ao Estado — como garantir material didático, alimentação, transporte, assistência à saúde e respeito à liberdade —, mas sua implementação é frequentemente insuficiente.
A falta de dados confiáveis agrava esse quadro. Informações básicas sobre número de alunos por sala, estrutura docente ou indicadores de saúde mental permanecem dispersas e de difícil acesso, dificultando qualquer avaliação do impacto da superlotação ou das condições de trabalho sobre o aprendizado. Ferramentas como o QEdu apresentam lacunas no cruzamento de variáveis, e o próprio Censo Escolar, embora extenso, não organiza os dados de forma acessível por sala ou etapa. Quando compreender uma rede de ensino exige cruzamentos manuais e reconstrução de séries históricas, perde-se transparência e capacidade de planejamento.
Essa escassez de informações também evidencia o pouco espaço concedido ao debate sobre valorização docente e a ausência de uma cultura de gestão baseada em evidências. Sem dados claros, torna-se difícil identificar desigualdades internas ou orientar investimentos de modo consistente. Nesse vácuo, governos estaduais, como o do Paraná — que chegou a 312 escolas cívico-militares em 2024 — implementam o modelo sem consulta ampla às comunidades. Embora apoiadores reivindiquem ganhos em disciplina e ordem, e dados preliminares indiquem redução de alguns indicadores de violência, trata-se de uma aprovação superficial: pais, estudantes e professores frequentemente desconhecem o projeto em profundidade, e a escolha das escolas costuma ocorrer sem debate democrático.
A resistência do professorado paulista
Em São Paulo, o modelo ganhou impulso após a posse do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), eleito em 2022 e alinhado ao bolsonarismo. Ao adotar a segurança escolar como prioridade, sua gestão apresentou a militarização como resposta direta à percepção de violência nas redes de ensino e anunciou, em 2024, a criação de cem escolas nesse formato. A proposta foi regulamentada pela Lei Complementar 1.398/2024, atualmente analisada pelo STF, refletindo tanto seu peso político quanto os questionamentos constitucionais que desperta.
Em julho de 2025, após a publicação do edital que autorizava a contratação de policiais da reserva como monitores, a APEOESP — sindicato dos professores — ajuizou ação e obteve liminar suspendendo o processo. O sindicato apontou quatro irregularidades: ausência de concurso público; remuneração maior para militares do que para docentes; falta de qualificação pedagógica dos contratados; e inexistência de consulta democrática às comunidades escolares. A ação expôs tensões jurídicas e éticas que ultrapassam o debate sobre segurança e revelam o quanto a militarização colide com princípios da gestão pública educacional.
Em agosto, o Tribunal de Justiça de São Paulo revogou a liminar e autorizou a retomada do cronograma. No início de setembro, porém, o Tribunal de Contas do Estado determinou nova suspensão, apontando falta de previsão orçamentária, risco de vínculos irregulares e ausência de concurso público para as funções previstas.
Em 20 de novembro, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) autorizou a retomada do edital para implantação das primeiras escolas do interior paulista, nos municípios de Sorocaba, Jundiaí, Piedade e Votorantim. Nesses locais, a seleção dos militares que atuarão nas escolas foi concluída, com lista veiculada no Diário Oficial do Estado. A sequência de decisões contraditórias expõe o quanto a expansão dessa política se apoia mais em impulsos políticos e disputas institucionais do que em planejamento administrativo sólido ou debate público amplo.
O tema segue pendente no Supremo Tribunal Federal. A Lei Complementar 1.398/2024, que instituiu o modelo de escolas cívico-militares em São Paulo, é alvo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 7662 e 7675) e se soma a outras ações semelhantes que contestam leis estaduais — como a ADI 6791, relativa ao Paraná. No conjunto, o STF discute não apenas a execução desses programas, mas se os Estados têm competência para criar um modelo de gestão escolar "cívico-militar", à luz da Constituição e das diretrizes nacionais de educação. Em 12 de setembro de 2025, a Corte referendou por unanimidade uma liminar que mantém a implementação provisória do modelo paulista enquanto o julgamento definitivo não ocorre. O mérito, porém, segue pendente — decisão que poderá validar ou suspender a política no Estado.
A militarização promete ordem, mas não enfrenta causas profundas de conflitos escolares: desigualdades, sofrimento psicológico e vínculos fragilizados. Em certos contextos, pode até agravá-los. Sua discussão ofusca, ainda, problemas urgentes como o aumento dos episódios de bullying e seus efeitos duradouros sobre a saúde mental. Evidências mostram que as vítimas têm risco muito maior de depressão, ansiedade e ideação suicida ao longo da vida.
Em risco, a formação do pensamento crítico
A ausência de dados confiáveis, a fragilidade da gestão e a descontinuidade das políticas enfraquecem o ensino público e criam terreno para soluções imediatistas. A crise aparece nas metas desconectadas da realidade, nos currículos padronizados por plataformas de desempenho e no silenciamento do conflito — elemento essencial do aprendizado. Quando metas sem propósito orientam o cotidiano, a função formadora se perde; quando o currículo é imposto de fora, a autonomia docente se dissolve; e quando o conflito é reprimido, o aprendizado deixa de ser reflexão para se tornar repetição.
Esse cenário se torna ainda mais crítico diante das condições de trabalho: redes com professores fora de sua área de conhecimento, sem formação adequada, com jornadas fragmentadas e contratações emergenciais que rompem a continuidade pedagógica. É nesse ambiente vulnerável que os modelos cívico-militares se apresentam como solução, deslocando a pedagogia para um plano secundário e substituindo mediação e diálogo por hierarquia e comando. Ao reduzir a gestão escolar à administração de comportamentos, reprimem-se sintomas e ignoram-se causas.
Superar esse ciclo exige o contrário: formação continuada, equipes psicossociais, espaços reais de escuta pedagógica e fortalecimento da autonomia das escolas. Pensamento crítico não nasce da obediência, mas da elaboração dos conflitos, da construção coletiva do conhecimento e da convivência democrática. Transparência na gestão, acesso a dados e participação da comunidade são condições estruturantes para que políticas educacionais respondam às necessidades reais — e não às soluções facilitadas que se impõem em momentos de crise.
Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.