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Falta de dados prejudica gestão do ensino público e abre caminho para expansão de escolas cívico-militares

Mesmo descontinuado, Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) segue ativo em alguns estados, apoiado nas legislações locais.

10 dez 2025 - 11h15
(atualizado às 17h59)
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Apesar de o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), lançado em 2019, ter sido oficialmente encerrado em 2023, o modelo continua ativo e em expansão em alguns estados e municípios brasileiros. Essa continuidade se apoia em legislações locais, convênios com forças de segurança e na expectativa de parte da população de que a presença militar possa responder a problemas como violência, indisciplina e evasão. Os dados do Ministério da Educação mais recentes sobre o tema registravam 202 escolas vinculadas ao programa e cerca de 120 mil estudantes atendidos em 2022. Hoje, com a descentralização, o número depende da soma de iniciativas estaduais e municipais, já que não há base unificada que concentre essas informações.

A disseminação dessas escolas não é uniforme. Estados como Paraná, Goiás e Rio Grande do Sul concentram boa parte das unidades, impulsionados por leis específicas e por governos que apresentam a militarização como solução rápida para problemas complexos da educação pública. Essa expansão fragmentada, sem padronização nacional ou avaliação independente, permite que um modelo centrado na disciplina, e não na pedagogia, se consolide sem que sua eficácia seja examinada a partir de parâmetros educacionais consistentes.

Escassez de dados e fragilidade de gestão

O cotidiano das escolas públicas brasileiras ajuda a entender por que propostas de militarização encontram terreno fértil. Professores enfrentam turmas superlotadas — muitas vezes com 40 alunos ou mais — e acumulam funções que extrapolam o ensino, atuando como mediadores, assistentes sociais e promotores de saúde mental. Sem respaldo técnico e com formações que não dialogam com a complexidade do cenário escolar, muitos desenvolvem quadros de exaustão e desmotivação, além de outras alterações da saúde física e mental. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabelece obrigações claras ao Estado — como garantir material didático, alimentação, transporte, assistência à saúde e respeito à liberdade —, mas sua implementação é frequentemente insuficiente.

A falta de dados confiáveis agrava esse quadro. Informações básicas sobre número de alunos por sala, estrutura docente ou indicadores de saúde mental permanecem dispersas e de difícil acesso, dificultando qualquer avaliação do impacto da superlotação ou das condições de trabalho sobre o aprendizado. Ferramentas como o QEdu apresentam lacunas no cruzamento de variáveis, e o próprio Censo Escolar, embora extenso, não organiza os dados de forma acessível por sala ou etapa. Quando compreender uma rede de ensino exige cruzamentos manuais e reconstrução de séries históricas, perde-se transparência e capacidade de planejamento.

Essa escassez de informações também evidencia o pouco espaço concedido ao debate sobre valorização docente e a ausência de uma cultura de gestão baseada em evidências. Sem dados claros, torna-se difícil identificar desigualdades internas ou orientar investimentos de modo consistente. Nesse vácuo, governos estaduais, como o do Paraná — que chegou a 312 escolas cívico-militares em 2024 — implementam o modelo sem consulta ampla às comunidades. Embora apoiadores reivindiquem ganhos em disciplina e ordem, e dados preliminares indiquem redução de alguns indicadores de violência, trata-se de uma aprovação superficial: pais, estudantes e professores frequentemente desconhecem o projeto em profundidade, e a escolha das escolas costuma ocorrer sem debate democrático.

A resistência do professorado paulista

Em São Paulo, o modelo ganhou impulso após a posse do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), eleito em 2022 e alinhado ao bolsonarismo. Ao adotar a segurança escolar como prioridade, sua gestão apresentou a militarização como resposta direta à percepção de violência nas redes de ensino e anunciou, em 2024, a criação de cem escolas nesse formato. A proposta foi regulamentada pela Lei Complementar 1.398/2024, atualmente analisada pelo STF, refletindo tanto seu peso político quanto os questionamentos constitucionais que desperta.

Em julho de 2025, após a publicação do edital que autorizava a contratação de policiais da reserva como monitores, a APEOESP — sindicato dos professores — ajuizou ação e obteve liminar suspendendo o processo. O sindicato apontou quatro irregularidades: ausência de concurso público; remuneração maior para militares do que para docentes; falta de qualificação pedagógica dos contratados; e inexistência de consulta democrática às comunidades escolares. A ação expôs tensões jurídicas e éticas que ultrapassam o debate sobre segurança e revelam o quanto a militarização colide com princípios da gestão pública educacional.

Em agosto, o Tribunal de Justiça de São Paulo revogou a liminar e autorizou a retomada do cronograma. No início de setembro, porém, o Tribunal de Contas do Estado determinou nova suspensão, apontando falta de previsão orçamentária, risco de vínculos irregulares e ausência de concurso público para as funções previstas.

Em 20 de novembro, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) autorizou a retomada do edital para implantação das primeiras escolas do interior paulista, nos municípios de Sorocaba, Jundiaí, Piedade e Votorantim. Nesses locais, a seleção dos militares que atuarão nas escolas foi concluída, com lista veiculada no Diário Oficial do Estado. A sequência de decisões contraditórias expõe o quanto a expansão dessa política se apoia mais em impulsos políticos e disputas institucionais do que em planejamento administrativo sólido ou debate público amplo.

O tema segue pendente no Supremo Tribunal Federal. A Lei Complementar 1.398/2024, que instituiu o modelo de escolas cívico-militares em São Paulo, é alvo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 7662 e 7675) e se soma a outras ações semelhantes que contestam leis estaduais — como a ADI 6791, relativa ao Paraná. No conjunto, o STF discute não apenas a execução desses programas, mas se os Estados têm competência para criar um modelo de gestão escolar "cívico-militar", à luz da Constituição e das diretrizes nacionais de educação. Em 12 de setembro de 2025, a Corte referendou por unanimidade uma liminar que mantém a implementação provisória do modelo paulista enquanto o julgamento definitivo não ocorre. O mérito, porém, segue pendente — decisão que poderá validar ou suspender a política no Estado.

A militarização promete ordem, mas não enfrenta causas profundas de conflitos escolares: desigualdades, sofrimento psicológico e vínculos fragilizados. Em certos contextos, pode até agravá-los. Sua discussão ofusca, ainda, problemas urgentes como o aumento dos episódios de bullying e seus efeitos duradouros sobre a saúde mental. Evidências mostram que as vítimas têm risco muito maior de depressão, ansiedade e ideação suicida ao longo da vida.

Em risco, a formação do pensamento crítico

A ausência de dados confiáveis, a fragilidade da gestão e a descontinuidade das políticas enfraquecem o ensino público e criam terreno para soluções imediatistas. A crise aparece nas metas desconectadas da realidade, nos currículos padronizados por plataformas de desempenho e no silenciamento do conflito — elemento essencial do aprendizado. Quando metas sem propósito orientam o cotidiano, a função formadora se perde; quando o currículo é imposto de fora, a autonomia docente se dissolve; e quando o conflito é reprimido, o aprendizado deixa de ser reflexão para se tornar repetição.

Esse cenário se torna ainda mais crítico diante das condições de trabalho: redes com professores fora de sua área de conhecimento, sem formação adequada, com jornadas fragmentadas e contratações emergenciais que rompem a continuidade pedagógica. É nesse ambiente vulnerável que os modelos cívico-militares se apresentam como solução, deslocando a pedagogia para um plano secundário e substituindo mediação e diálogo por hierarquia e comando. Ao reduzir a gestão escolar à administração de comportamentos, reprimem-se sintomas e ignoram-se causas.

Superar esse ciclo exige o contrário: formação continuada, equipes psicossociais, espaços reais de escuta pedagógica e fortalecimento da autonomia das escolas. Pensamento crítico não nasce da obediência, mas da elaboração dos conflitos, da construção coletiva do conhecimento e da convivência democrática. Transparência na gestão, acesso a dados e participação da comunidade são condições estruturantes para que políticas educacionais respondam às necessidades reais — e não às soluções facilitadas que se impõem em momentos de crise.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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