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Aprendi com a minha avó: a herança das chefes de família

“A nossa ancestralidade nos ensina sobre a potência curativa de estarmos juntas”, afirma psicanalista

14 jul 2023 - 09h47
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Além da Feira Preta, o trabalho de Adriana Barbosa deu origem ao hub de criatividade, a Preta Hub, em São Paulo
Além da Feira Preta, o trabalho de Adriana Barbosa deu origem ao hub de criatividade, a Preta Hub, em São Paulo
Foto: Divulgação / Reprodução Forbes

O Brasil tem hoje cerca de 11 milhões de lares chefiados por mulheres, sendo que  62% delas são negras e vivem em regiões periféricas e/ou com baixa renda. A partir dos dados do Dieese em 2023, se iniciam as tentativas para compreender como estes lares são administrados e se mantêm de pé. A resposta é mais antiga e próxima do que parece: as redes formadas em comunidade. O compartilhamento de saberes e práticas ancestrais que vêm dos mais velhos é parte fundamental disso. 

“O nosso quintal é a farmácia mais poderosa e acessível que temos”, reconhece Suellen Massena, artista da palavra, quando se lembra do que aprendeu com suas avós em comunidade. É interessante perceber como os ensinamentos ancestrais são mantidos de forma sutil, colaborando para a nossa qualidade de vida e perpetuação da nossa história. Digo isso enquanto uma mulher preta, que cresceu no quintal onde para toda dor há um chá. Para todo acontecimento há um ritual para agradecer. Para toda falta, há criatividade, afeto e ideias antigas, mas sempre novas para reorganizar as coisas dentro de casa.

Astúcia para lidar com a escassez

Remediando com as ervas que ora é fervida, ora é macerada, ora protege enquanto enfeita a orelha, a sobrevivência e o crescimento através das raízes ancestrais acontece.”Tive um lar comandado por mulheres, fui educada por bisavó, avó e mãe. O fato de ter sido educada em rede, em comunidade por muitas mulheres, já traz saberes ancestrais importantes. Um lar de empreendedoras, negociadoras natas. Saberes trazidos dos mercados africanos. A gestão financeira na escassez, fazer o orçamento durar um mês, também pra mim traz saberes importantes”, conta a criadora de Feira Preta, Adriana Barbosa, que aprendeu dentro de casa ensinamentos que carrega consigo.

“Eu acho que a escassez de recursos fez desenvolvermos a habilidade da criatividade. Essa criatividade traz a matéria prima que nunca se acaba, que é o poder intelectual para criar”, considera a empresária. A necessidade como combustível é uma dura realidade para que a criatividade seja posta em prática, mas novamente, resgata ensinamentos antigos para fazer a manutenção da realidade. Entre as soluções urgentes, nascem novos negócios para complementar a renda e garantir a sobrevivência com mais dignidade. 

“É criar pratos sem mistura, como falamos. Produzir manualidades como artesanato, ou  fazer tranças, muitas vezes como complemento de renda. É preciso muita astúcia para lidar com a escassez”, pontua Adriana. Mas quando há comida no prato, a gastronomia também falava alto dentro de sua cara, um lar de mulheres cozinheiras que trouxeram habilidades, criatividades do atlântico negro. As receitas e conhecimentos trazidos por elas ajudaram também no processo de transição capilar de outras mulheres negras. “Tinham fórmulas ancestrais no cuidado, com itens extraídos da natureza como óleo de coco, babosa e abacate”, relembra Adriana. 

Sempre tinha algo para aprender

A cozinha, assim como o quintal, também é um espaço de acolhimento, trocas e aprendizados. Para Stam, chef de cozinha e idealizador do Quintal MandaK Nega, onde cozinha ao lado da Dona Rose, chamada de mãe de todos, mas também dele. “A sobrevivência era o que nos passavam quando criança, minha avó no plantio, meu pai pegando lenha e a gente bisbilhotando minha mãe na cozinha”, relata o chef. “Não tinha receita melhor ou ensinamentos que suprissem os ensinamentos dos mais velhos, infelizmente às vezes vejo que esses ensinamentos vão se perdendo a meio tantas facilidades e tecnologias, mas temos muito ainda de herança”, pontua.

Com a receita, os ensinamentos e a companhia ideal, o trabalho realizado por Stanley Albano é baseado no afeto vindo da ancestralidade. “Cozinhando juntamente de minha mãe, às vezes algum amigo bem próximo para nos dar suporte possibilita uma busca por clientes que querem viver essas experiências em família, coisa de casa mesmo. É algo que não é tão comum quando se busca a comida afetiva de fato afetiva, sendo que  muitas são apenas status e ideias compradas somente em prol de um sucesso financeiro”, explica o cineasta e cozinheiro.

Quem veio ensina a lidar com a ciclicidade das situações

E quando se fala em afeto, o poder das palavras e a sabedoria para ouvir também é um ensinamento que vem da avó pretinha que vez ou outra para na calçada só pra observar o movimento da rua. Para Suellen Massena, nascida e criada entre as comunidades de Calabar e Gantois, em Salvador, cada uma das mulheres mais velhas em sua vida são lições e lembretes do que já fomos e ainda poderemos ser.

“A convivência com minhas avós Alayde e Lourdes me preenche muito. Ao me ensinar, por exemplo, que há um chá para cada dor sentida. A vivência com a Tia Quinha, vizinha da frente que me ensina como devo cantar  folha enquanto me conta uma história. Dona Lalu, que toda segunda antes do sol se pôr, sentava na porta com sua roupa branca e um balaio de pipoca, mostrando respeito por quem veio antes. Daí vem o contato com toda a comunidade também. Da vivência com as mais velhas, dos provérbios e ditados ditos por todas elas e mainha no momento de chamar a atenção”, conta a comunicadora.

Com prática clínica não-dissociada do campo social, a iniciativa cuida de questões que envolvem classe, gênero, raça e território. | Reprodução/Instagram
Com prática clínica não-dissociada do campo social, a iniciativa cuida de questões que envolvem classe, gênero, raça e território. | Reprodução/Instagram
Foto: Reprodução/Instagram

Para a psicanalista Ana Carolina Barros, o conhecimento sobre nossa história é base para o pertencimento e um cuidado também com a saúde mental. “Quando a gente tem uma casa que respeita as nossas raízes ancestrais e isso nos permite a transmissão desses saberes intergeracionalmente, é muito potente. Quando a gente fala sobre saúde mental, saber a nossa história, saber as nossas raízes, saber da caminhada do nosso povo até aqui e nos reconhecer nesse processo é algo que nos ajuda a entender quem nós somos, onde nós estamos hoje e para onde a gente tá indo”, explica.

Relembrando a base do trabalho que realiza na internet, Suellen conta que notou que dores em comum eram trabalhadas de uma forma melhor em união. "Me peguei observando o que acontece quando estou com os meus:  seja na rua onde cresci, seja em um almoço de domingo em família ou em um dia função em minha casa de asé, existem muitas vivências boas que nos conectam e nos curam."

Suellen registrou o encontro que teve com a contadora de histórias afro-brasileira Cici de Oxalá
Suellen registrou o encontro que teve com a contadora de histórias afro-brasileira Cici de Oxalá
Foto: Reprodução/Instagram

"A nossa ancestralidade nos lembra sabedorias muito importantes sobre o que é o cuidado com o outro, o acolhimento com o outro", explica a psicanalista. No local em que trabalha, a Casa de Marias, espaço de escuta e acolhimento coordenado por mulheres negras e oferece psicoterapia individual, em grupo e para diferentes faixas etárias, os processos de cura também são atravessados pela identificação e o pertencimento.

Ciente disso e colocando em prática os ensinamentos que continua recebendo através da ancestralidade, o trabalho realizado por Suellen está na tradução e no compartilhamento disso. “Quem veio antes de mim me ensina a lidar com a ciclicidade das situações. Deixou registrado de várias maneiras ensinamentos de como caminhar melhor e lidar com diversas situações que achamos que não damos conta. E eu compreendo cada vez mais que estamos aqui pra essa troca. Relembrar os caminhos e principalmente, prosperar.”

"Isso é protetivo em termos de saúde mental, é potencializador para nossa saúde mental. A nossa história familiar nos conta muito sobre quem nós somos e quando a gente é impedido de acessar esses saberes, uma parte de nós também ficamos impedidas de acesso, então isso é algo muito importante”, conclui Ana.

Fonte: Redação Nós
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