'Mudança do clima já transforma o currículo dos médicos', diz CEO da Afya
Para Virgílio Gibbon, alterações de temperatura e umidade podem influenciar o diagnóstico e a incidência de endemias; preparação do médico precisa acompanhar transformações, afirma
Qual o impacto do meio ambiente na saúde das pessoas? Mudanças de temperatura e umidade podem influenciar diretamente o diagnóstico médico e a incidência de endemias, segundo a Afya. Por isso, o hub de educação em saúde e healthtechs considera que a preparação do médico precisa acompanhar essas transformações.
Em entrevista à série especial "A Era do Clima, Rumo à COP-30", Virgílio Gibbon, CEO da empresa, destrincha como o grupo enfrenta questões relacionadas à formação desses profissionais de saúde no Brasil, em meio ao debate sobre se o País forma mal ou se o problema se deve mais a uma distribuição desequilibrada entre os grandes centros urbanos e o interior.
Ele também discute como a sustentabilidade está sendo incorporada aos currículos das escolas do grupo, além da interiorização da Afya e a grande transformação da empresa no pós-pandemia.
Sobre a COP, Gibbon diz que o fato de o evento ocorrer no coração da Amazônia já é uma "mensagem forte". "Precisamos sair de lá com propostas factíveis", defende.
A seguir, trechos da entrevista, que pode ser acompanhada na íntegra no vídeo acima.
A Afya é uma empresa de educação ou de tecnologia?
Hoje, não dá para falar em educação sem tecnologia. Cada aluno aprende de uma forma diferente. E agora estamos em uma nova revolução, em que o conteúdo passa a ser gerado por inteligência artificial. Temos cerca de mil engenheiros na empresa, atuando tanto no suporte à educação quanto nas soluções para o dia a dia do médico. A revolução que temos hoje não é de distribuição de conteúdo, mas de geração de conteúdo. A forma de ensino muda completamente. São três revoluções sucessivas: uma quando o aluno chegava totalmente analógico; outra quando ele chega com a leitura e o aprendizado digital; e a terceira, agora, quando o conteúdo passa a ser gerado por IA. Não dá para não ser muito intenso em tecnologia na parte de educação. Fora isso, nós nos propusemos também a revolucionar a rotina do médico. Não fizemos apenas investimentos: trouxemos empresas líderes em tecnologia para a saúde, voltadas a resolver várias dores no relacionamento médico-paciente, como agendamento de consultas, suporte à tomada de decisão à beira do leito, aumento de produtividade na gestão do consultório e prescrição digital. Desenvolvemos e adquirimos soluções campeãs. Somos uma empresa de tecnologia, não apenas para suportar a jornada educacional, mas também para adequar o processo de ensino e aprendizagem ao perfil de cada aluno, tornando essa jornada mais flexível e prazerosa. Além disso, temos soluções que fazem diferença na rotina do médico.
Esse processo de incorporação de empresas tecnológicas ao grupo é fruto da época da pandemia?
A Afya hoje é um player presente em toda a jornada da formação e atuação profissional na área médica. Atuamos desde a graduação — com 33 escolas de medicina espalhadas pelo Brasil, sendo mais de 15 localizadas na região Norte — até a educação continuada, como o preparatório para residência e especializações. A partir de 2020, durante a pandemia, começamos a oferecer também soluções digitais que ajudam o médico no seu dia a dia. Naquele momento, falar em telemedicina ou prescrição digital era quase uma heresia. Percebemos que o modelo de formação vigente não estava adequado ao médico do pós-pandemia. Trouxemos 12 healthtechs e montamos um segmento de serviços digitais que vai do agendamento de consultas ao suporte à decisão clínica. Hoje, o Whitebook, por exemplo, é usado diariamente por mais de 250 mil médicos. No ano passado, entre agosto e setembro, essa ferramenta nos ajudou a antecipar em três meses os surtos de dengue que vieram no verão, ao detectar aumento nas buscas por protocolos relacionados à doença.
Além do uso da tecnologia, os médicos formados no Brasil podem ser considerados de qualidade?
O Brasil tem um problema sério de distribuição de médicos, não de quantidade. A densidade médica no Sudeste é maior do que em muitas capitais europeias, mas o interior ainda sofre muito. Além disso, há carência de especialistas. Estamos formando quase 40 mil médicos por ano, mas há apenas 15 mil vagas de residência, o padrão ouro, e muitas ficam ociosas porque os profissionais optam por outros caminhos, como atuar como generalistas. Sobre a qualidade, existem escolas excelentes, mas outras com infraestrutura precária. É preciso reforçar o processo de fiscalização e avaliação do MEC, não apenas ao final do curso, mas ao longo da formação. No nosso caso, sabemos da nossa responsabilidade: estamos formando médicos como se estivéssemos formando pilotos. Você entra em um avião e quer um piloto bem treinado; é a mesma coisa ao entrar em uma sala de cirurgia.
Como enfrentar a questão da falta de especialistas?
A quantidade de vagas para residência é boa, mas muitas não estão sendo preenchidas. Às vezes o médico quer empreender ou seguir uma carreira alternativa; outras vezes, prefere atuar como generalista, em plantões. Como resolver a falta de especialistas, principalmente em regiões carentes? Não basta formar o médico generalista: é preciso ter também o cardiologista, o ortopedista, o pediatra. É necessário rever o modelo de residência. Como as parcerias público-privadas podem ajudar na formação de mais especialistas? Esse debate está em curso. Pela quantidade de vagas no ensino superior, o Brasil estará entre os cinco países com maior densidade de médicos por habitante em 2033. Mas é preciso criar incentivos não apenas para distribuir melhor os médicos, como também para formar mais especialistas e garantir um atendimento mais econômico e homogêneo.
Dentro do tema da formação médica, a questão ambiental é uma preocupação?
Em agosto, vamos lançar o segundo Afya Summit, com esse tema como central: como o impacto ambiental afeta a saúde do indivíduo. Mudanças de temperatura e umidade influenciam diretamente o diagnóstico e a incidência de endemias. A preparação do médico precisa acompanhar essas transformações. Entre 10% e 20% do currículo das nossas escolas aborda as características regionais. Por exemplo, o que ocorre com doenças respiratórias no semiárido nordestino é diferente do que ocorre em regiões úmidas.
E como a sustentabilidade se insere na rotina da Afya?
Para nós, é quase a mesma coisa. Afya significa saúde e bem-estar em sua origem. Nossa missão é transformar a medicina junto do médico no país. Hoje, temos 33 unidades de graduação e mais de 20 de especialização, todas com clínicas e ambulatórios que realizam quase um milhão de consultas gratuitas por ano. Cerca de 50% disso ocorre nas regiões Norte e Nordeste. Estamos presentes em cidades com menos de 100 mil habitantes e baixa densidade médica, às vezes menos de um médico para cada 10 mil habitantes. Ao levar uma escola de medicina, também levamos profissionais qualificados, e muitos permanecem na região após a formação. Já comparamos municípios com operações da Afya a outros semelhantes sem essa presença. Para cada real investido, houve um retorno de R$ 3,58 em impacto social. Investimos cerca de R$ 4 bilhões e tivemos um retorno estimado de R$ 15 bilhões para a sociedade.
O atendimento é feito via SUS? Como funciona?
Temos vários modelos. Às vezes é "porteira aberta": o paciente agenda e comparece. Em outros casos, há parcerias com a secretaria municipal de Saúde. Dependendo da especialização, o paciente é encaminhado para enriquecer a prática dos alunos. A origem da Afya já tinha esse propósito: levar saúde onde há maior carência. Hoje, atuamos como uma rede neural, com presença forte no interior e hubs nas capitais. Um médico formado no interior pode se especializar na capital e retornar à sua cidade com boa renda, devido à menor concorrência.
O Norte do Brasil, mais precisamente Belém, vai receber a COP-30 em agosto. Qual sua visão sobre o papel do setor privado diante das mudanças climáticas?
O fato de a COP ocorrer no coração da Amazônia já é uma mensagem forte. Precisamos sair de lá com propostas factíveis. Do lado da Afya, apesar de sermos uma empresa de tecnologia com pegada limpa, fazemos o dever de casa. Cerca de 60% a 70% da energia das nossas unidades vem de painéis solares. Temos manejo certificado de resíduos e mostramos isso aos nossos alunos como exemplo. Sou um eterno otimista quanto ao enfrentamento das mudanças climáticas globais. Estamos cercados de gente consciente, com cultura forte de sustentabilidade. Penso que, com trabalho, paixão e persistência, é possível avançar.