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Leia trecho do melhor romance do Prêmio São Paulo de Literatura, 'A Árvore Mais Sozinha do Mundo'

Obra de Mariana Salomão Carrara aborda convivência familiar e os desafios de se trabalhar com a terra

24 nov 2025 - 20h53
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Escrito por Mariana Salomão Carrara e publicado em agosto de 2024 pela Todavia, A Árvore Mais Sozinha do Mundo venceu a categoria de Melhor Romance no Prêmio São Paulo de Literatura 2025, entregue na noite desta segunda-feira, 24. Esta é a segunda vez que um livro de Mariana ganha o prêmio - em 2023, ela venceu com Não Fossem as Sílabas de Sábado.

O romance mais recente, premiado agora, narra a história de uma família, que vive da plantação de tabaco no Sul do País, e como suas diferenças causam uma convivência turbulenta, intensificada pelas incertezas de depender do trabalho com a terra para sobreviver.

A obra é protagonizada pelo casal Guerlinda e Carlos e seus três filhos. A mais velha, Alice, resiste ao trabalho braçal e sonha em participar de um tradicional concurso de beleza da região. Filha do meio, Maria é a única da família que frequenta a escola, habitando um mundo à parte do trabalho rural. Já o caçula, Pedrinho, tem três anos e, embora ainda não fale, já participa do dia a dia da plantação, vivendo em meio às nuvens de agrotóxicos que permeiam a fazenda.

Mariana Salomão Carrara, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura
Mariana Salomão Carrara, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura
Foto: Léo Souza/Estadão / Estadão

Elvira, mãe de Guerlinda, também tem papel importante, tentando manter a família unida em meio ao intenso período de colheita. Apesar de seus esforços, ela encontra desafios em manter a paz na casa.

'A árvore mais sozinha do mundo' narra os desafios familiares e geracionais que cercam uma plantação de tabaco no Sul do País
'A árvore mais sozinha do mundo' narra os desafios familiares e geracionais que cercam uma plantação de tabaco no Sul do País
Foto: Todavia/Divulgação / Estadão

Narrada a partir da visão de alguns objetos e uma árvore que rodeiam a família, A Árvore Mais Sozinha do Mundo discute mazelas que dominam o Brasil de norte a sul e a luta familiar pela sobrevivência.

Confira a seguir um trecho de 'A Árvore Mais Sozinha do Mundo'

"O sol já borrou seu rosa no começo do céu, os galos já sabem que hoje começa a canseira, o inferno. Já posso quase adiantar o cheiro da fornalha dia e noite comendo a bracatinga e a lenha da firma. Eles acham que não sentimos cheiro, mas

a gente sente, se eu estivesse numa floresta com as minhas amigas sentiria o cheiro que elas me mandariam toda vez que um besouro começasse a mastigar as folhas, e ameaçasse deitar seu entojo de larvas nas nossas estrias. É um olfato lento, somos lentas.

Tento avisar ao tabaco: preparem o baixeiro que hoje vão torcer e arrancar o que puderem. Mas as plantas cultivadas são surdas, cegas, as raízes não falam comigo nem com ninguém. A natureza tem essa birra com os humanos, de alguma forma recusamos esse novo deus. Quando os homens ajeitam meticulosamente sementes no chão, estão cultivando arremedos de nós.

Por conta desse capricho das culturas é que levam tantos venenos, não sabem sentir o gosto da mordida de uma lagarta, identificar pela saliva e espalhar a notícia pelos vizinhos, não sabem receber recados pelos fungos sob a terra, sabem ainda menos de amor.

E também precisam das mãos do seu criador para tudo. Se não lhes tomam as flores, gastam energia e ficam tacanhos. Agora depois que as crianças e a Guerlinda despontarem os pés e colherem as folhas do baixeiro ainda é capaz que o tabaco cresça mais. Sempre à espera de um conselho humano.

Maria vem com sono, é a primeira a sair da casa rumo à sua missão. Decerto quer dar o seu melhor no domingo, senão podem querer segurá-la aqui na hora da aula. Enquanto não sua nem arde do sol, pode ser que não precise da roupa de proteção. As folhas sequinhas não estão prontas para enjoar os seus humanos com overdoses de nicotina, em mais um dos espetáculos de ingratidão da natureza.

Apanha a carriola. Melhor seria alugarem de novo um boi de canga para carregar mais folhas de uma vez, a verga lá ao longe com essa carriola, não sei. Pode ser que arrumem algum para as mais distantes. Há o triciclo do vizinho a que poderiam atar a carroça maior. Mas também sou uma árvore isolada, não posso saber isso de vizinhos. Somos assim insuladas e vivemos menos do que podíamos, é o que temos.

Maria começa na primeira verga, logo ali à frente. Imagino o sentimento de estar agachada sob o primeiro pé de tabaco, o primeiro de alguns hectares. Nem mesmo quando bombeio um nitrogênio da ponta da minha mais distante célula tenho pela frente uma imensidão de trabalho assim. Torce os pulsos em torno dos caules mais baixos, as costas arqueadas, vai arrastando os pés na terra no contrário da ergonomia. Curva-se às plantas, aos caprichos da natureza.

Alisa as primeiras folhas, está oficialmente inaugurada a colheita. Sorri para elas como fossem uma boneca que aninhasse nos braços. Na certa faz algum pedido, que este ano sobrem menos dívidas, que sejam as melhores folhas, que o pai reaprenda a sorrir. O que sabe uma árvore dos pedidos de uma criança supostamente feia esquecida no canto de um país esquecido num mundo que vai acabar porque nós da natureza insistimos em discordar dos humanos. Uma criança colhendo um fumo que não se pode comer, mas que ela agora acalenta, porque é o melhor que podem ter por aqui, a maior certeza ao fim de cada ano. Aqui vivemos o tempo do tabaco."

A Árvore Mais Sozinha do Mundo

  • Autora: Mariana Salomão Carrara
  • Editora: Todavia (208 págs.; R$ 69,90; R$ 49,90 o e-book)
Estadão
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