Sherlock Holmes: o superdetetive parrudo da rua Baker
Logo no começo do filme Sherlock Holmes -e em novas cenas mais adiante-, o famoso detetive exibe seus poderes de raciocínio de maneira que Arthur Conan Doyle, o criador do personagem, jamais teria imaginado.
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Ao observar um capanga de guarda enquanto seus comparsas cometem um crime horroroso na penumbra de uma igreja, Holmes calcula de que exata maneira poderia surpreender o sujeito e colocá-lo a nocaute. A audiência acompanha seu processo de raciocínio por meio de uma sequência em câmera lenta, e observa de que maneira as leis da física e da anatomia serão colocadas em uso para partir ossos, esmagar órgãos e dilacerar a carne do adversário. Depois da exibição prévia de como a cena transcorreria, os espectadores têm a oportunidade de assisti-la uma vez mais, dessa vez com mais barulho e em tempo real.
O Holmes de Conan Doyle, que chegou à cena da cultura vitoriana em 1887 (com a publicação de Um Estudo em Escarlate) vem se adaptando desde então às mudanças de gosto do público e ao avanço da tecnologia. Ele sempre foi uma espécie de quase super-herói, aberto a todas as formas de elaboração e variação, e até mesmo a uma certa zombaria, desde que os traços fundamentais da marca fossem respeitados. Pela maior parte de sua existência, ele viveu no número 221 da rua Baker, fumou cachimbo, tocou violino e aderiu firmemente à vida de solteiro e a uma crença inabalável nas virtudes do chapéu de caça que sempre usa.
Mas Holmes nunca foi muito chegado à violência física, e a principal inovação dessa nova visão sobre o detetive, interpretado por Robert Downey Jr., sob a direção de Guy Ritchie, e aparentemente destinada a servir como base para continuações, é que além de todas as suas demais virtudes ele se transformou em um sujeito parrudo, disposto a desferir socos, cabeçadas e joelhadas como um verdadeiro herói de ação.
Mas ainda assim inteligente, claro -e, na interpretação de Downey, com seu humor caracteristicamente agudo e sua fleuma despreocupada, Holmes tem mais inteligência do que o filme parece capaz de aproveitar. (Na versão de Downey, o detetive também abandonou seu chapéu característico, em troca de modelos mais formais, talvez em homenagem a Charles Chaplin, outro personagem interpretado pelo ator).
É claro que inteligência jamais teve destaque entre os interesses ou atributos de Ritchie como diretor. O desejo primordial dele, realizado com certo sucesso nos primeiros filmes de sua carreira, como Lock, Stock and Two Smoking Barrels e Snatch, sempre foi o de parecer cool: fazer filmes sobre caras bacanas dotados de equipamento bacanas. Sim, seu Sherlock Holmes é razoavelmente cool. Mas isso não é um verdadeiro elogio.
Ainda assim, estamos em época de férias, e os espectadores têm tempo e energia de sobra, de modo que talvez possamos dizer que tampouco é uma crítica. Há coisas piores que esse esforço frenético e ruidoso para parecer cool, e, em determinados momentos e cenas de humor, Sherlock Holmes oferece diversão, ainda que intermitente.
O estilo visual -uma imagem gordurosa e poluída da Londres vitoriana, ao modo steam-punk, repleta de fuligem, tripas, dentes cariados e roupa de época- demonstra certo talento. E o mesmo se aplica às perseguições e confusões cinematográficas que nos arrastam pelas ruas da cidade, enquanto Watson e seu colega Watson (Jude Law) batalham para desvendar uma conspiração tão diabólica que nem sequer consegue despertar o interesse. O melhor do filme está no diálogo brincalhão entre Downey e Law, este último trabalhando de maneira mais solta e mais travessa do que costuma -além de ficar bem de bigode.
Já Rachel McAdams parece estar no filme apenas para disfarçar o possível aspecto homoerótico do relacionamento entre os protagonistas. Usando um belo e ousado vestido vermelho, ela entra no filme para acrescentar um pouco de cor e esconder os fatos. Holmes e Watson vivem juntos há muito tempo, e brigam afetuosamente como um velho casal. O noivado de Watson com uma página de diálogo escrito sem cuidado (Kelly Reilly, como Mary) causa um acesso de ciúmes no amigo, mas essa parte da trama perde suas implicações mais interessantes quando McAdams surge como uma luxuriosa ladra chamada Irene Adler.
McAdams é uma atriz perfeitamente charmosa, e interpreta da melhor maneira possível o seu papel de vela no romance de ação entre os dois protagonistas. Mas Irene, embora conste de alguns dos contos de Conan Doyle, parece servir no filme a propósitos menos artísticos que comerciais. Ela oferece algum interesse às espectadoras -as quais, de acordo com a estranha lógica que rege as empresas de Hollywood, se interessam mais por assistir a um filme que contenha uma mulher em papel combativo- e também aos rapazes, que por mais que gostem de lutas, explosões, armas e perseguições, também gostam de garotas.
Exatamente como Holmes e Watson! Eles realmente gostam de mulheres, a despeito da paixão física mal e mal sublimada que manifestam um pelo outro a cada cena. Tenho certeza de que a Warner Brothers preferiria que eu mudasse de assunto e contasse aos leitores sobre a diabólica conspiração que desafia ao máximo o talento de Holmes como detetive, bem como sua fé na supremacia do raciocínio lógico.
Ao que parece um aristocrata maligno (Mark Strong), executado por uma série de homicídios, volta dos mortos para mobilizar uma antiga sociedade secreta que parece ter chegado à história em uma máquina do tempo, vinda diretamente de um romance de Dan Brown. Isso não parece fascinante? É, eu sabia que não. Mas haverá uma continuação, para a qual esse filme frenético e inofensivo serve basicamente como um longo comercial, e pode ser que ela traga como vilão o grande inimigo de Holmes, o professor Moriarty. Sem dúvida o detetive vai quebrar uma cadeira na cabeça do rival, acertar-lhe uma cutelada nos rins e um chute na cara - mas tudo isso com muito humor, já que ele é um grande detetive.