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Clássico do Dia: 'Queimada!', uma cartilha sobre a perpetuação do colonialismo

Dica de hoje do crítico Luiz Carlos Merten é o filme de 1969 do diretor italiano Gillo Pontecorvo

4 jun 2020 - 08h14
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Em 2002, na ressaca do 11 de Setembro, cinéfilos de todo o mundo descobriram, e não sem espanto, que a cartilha do Pentágono era um épico realizado quase 40 anos por um comunista histórico italiano, Gillo Pontecorvo. A Batalha de Argel aborda táticas e técnicas de guerrilha urbana. Virou a bíblia de militares dos EUA para tentar entrar na cabeça dos mártires da fé da Al-Qaeda. Outro filme de Pontecorvo, de 1969, também se tornou objeto de estudo, mas em outro contexto, e com outro objetivo. Queimada! é sobre a criação de um líder revolucionário numa ilha do Mar das Caraíbas. Tornou-se, para toda a esquerda, a cartilha de como o colonialismo busca sempre maneiras de se perpetuar.

De uma forma muito especial, costuma ser lembrado como aquele filme em que um não profissional colombiano, um jovem negro que nunca tinha feito cinema - nunca havia encarado uma câmera -, simplesmente roubou a cena do grande astro de Hollywood, Marlon Brando. Evaristo Márquez é magnético, para dizer-se o mínimo. Também é considerado o ponto alto de uma trajetória tão singular quanto a de Gillo, na verdade Gilberto, Pontecorvo. Ele se tornou diretor nos anos 1950, com o episódio de Rosa dos Ventos e o longa A Grande Estrada Azul. Iniciou os 60 com uma acalorada polêmica nas páginas da revista Cahiers du Cinéma. Vale a pena lembrar.

Kapò, que recebeu no Brasil o subtítulo Uma História do Holocausto, é de 1960. Mostra Susan Strasberg como a jovem judia que colabora com nazistas no campo de extermínio, para sobreviver. E quase toda polêmica decorreu de uma cena, um travelling sobre Emmanuelle Riva, a atriz de Alain Resnais em Hiroshima, Meu Amor, quando a personagem, para fugir ao inferno do campo, prefere morrer, jogando-se contra a cerca eletrificada. Pontecorvo e seu diretor de fotografia movem a câmera para captar (esteticamente?) a mão de Emmanuelle pendurada nos fios. Para os autores da nouvelle vague, o travelling devia ser uma questão de moral. Jacques Rivette, na Cahiers, atacou o 'formalismo' de Kapò e perguntou-se que homem, que artista faria um movimento de câmera daqueles? Deixava implícito que não seria alguém comprometido com a ética, nem o humanismo. Só faltou Pontecorvo ser chamado de fascista.

Não era bem o que se poderia pensar de um diretor com o currículo dele. Irmão do cientista italiano Bruno Pontecorvo, que integrou, como físico, a equipe que desenvolveu o projeto da bomba atômica soviética, comunista de carteirinha, Gillo estudou química. Desistiu ao perceber que a ciência lhe falava menos que a arte. Tornou-se assistente, ator e, finalmente, diretor. Os longas de ficção possuem um pé no documentário, que marcou seu começo. Pelo tratamento fotográfico, pelo próprio estilo de filmar, o espectador é capaz de jurar que Pontecorvo utilizou cinejornais em A Batalha de Argel, mas não - foi tudo filmado por ele (e por seu diretor de segunda unidade, Giuliano Montaldo, que faria depois Sacco e Vanzetti e Giordano Bruno, em 1970 e 73). O diretor de fotografia Marcello Gatti e o compositor Ennio Morricone seriam os mesmos em Queimada!

O nascimento de uma nação. A invasão da Casbah pelos paraquedistas do Coronel Mathieu na suíte de uma onda de atentados terrroristas, as três mulheres que distribuíram as bombas de plástico por locais de grande aglomeração, incluindo o famoso Milk Bar, frequentado pela elite europeia. A batalha de 7 de outubro de 1957, a prisão do líder da resistência argelina, Yacef Saadi, que interpreta o próprio papel. Todos os eventos que culminaram na independência da Argélia reconstituídos com minúcia e vigor épico. O filme recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1966. Só para esclarecer, foi no mesmo ano em que Robert Bresson, com Au Hazard Balthazar/A Grande Testemunha, venceu o prêmio especial do júri. Mais três anos e veio Queimada!, de novo o tempo do colonialismo, mas agora com outra perspectiva.

Franco Solinas já vinha sendo roteirista habitual de Pontecorvo. Nos anos seguintes escreveria Estado de Sítio para Costa-Gavras e Cidadão Klein para Joseph Losey - todos títulos integrados a uma estética essencialmente política, por mais diversos que sejam entre si. A grande novidade de Queimada! é o foco marxista na reinterpretação econômica da história combinado a um ponto de vista frantz-fanoniano. Frantz Omar Fanon foi um psiquiatra e ensaísta francês da Martinica, negro e marxista, que pensou a descolonização e esteve envolvido na mobilização pela independência argelina. Seus escritos sobre cultura e expressão popular estabeleceram o conceito de descolonização das mentes. Foram muito influentes na época. Houve revoltas populares no Haiti e um soldado norte-americano chamado William Walker que, no século 19, se tornou presidente da Nicarágua, no bojo de uma insurreição financiada pelo magnata Cornelius Vanderbilt. Juntando as coisas com a liberdade permitida pela ficção, Pontecorvo e seu roteirista criaram a fábula, rica em colorido - um épico revolucionário em formato de narrativa popular vibrante, com elementos de capa e espada.

Situaram a história na ilha fictícia de Queimada, supostamente colonizada por espanhois, mas a ditadura de Franco interveio e a colônia virou portuguesa. Queimada é um centro produtor de cana de açúcar e é lá que chega o agente inglês Walker, enviado ao Novo Mundo para fomentar revoluções. A ideia é acirrar processos de independência para atrelar, economicamente, os novos países à Coroa britânica. Ou seja, Queimada produzirá somente para Londres, e nos termos ditados pelos novos senhores. Quando Walker chega, a revolta que havia sido vencida e o líder, executado. Ao descer do navio, ele encontra esse jovem negro que se oferece para levar suas malas. "Your bags, señor?" Seu nome é José Dolores - numa colônia de Portugal deveria ser, talvez, José das Dores. É interpretado por um nativo sem nenhuma experiência dramática. Evaristo Márquez foi escolhido pela altivez do porte, pela beleza. Walker vê nele a possibilidade de forjar um novo líder que, no futuro, atenderá às exigências do império de Sua Majestade.

Inicia o processo de ensinamento baseado na técnica socrática conhecida como maiêutica. Faz perguntas que Dolores é direcionado para responder. O filme torna-se um manual sobre como fazer a doutrinação ideológca, e nisso forma um díptico com A Batalha de Argel. Ambos levantam a questão do objetivo. As voltas que o mundo dá - A Batalha, que defende a violência revolucionária, virou manual da contra-insurreição no Pentágono. O jogo de manipulação em Queimada! é colocado em xeque. José Dolores é criado para ser uma marionete - mas não é. Encerrada sua missão - colocar Dolores no poder -, Walker parte. Volta dez anos mais tarde, porque Dolores colocou-se à frente de outro movimento, contra o novo colonialismo. Com o poderio militar britânico, Walker esmaga a rebelião, mata os dirigentes que cercam Dolores, mata o próprio Dolores. As duas faces da revolução - a massa, na Batalha, o líder individualizado, aqui. Na verdade, é a massa, de novo e sempre.

A crítica Pauline Kael, que sempre admirou os dois filmes de Pontecorvo, exaltava o jeito do diretor para multidões e batalhas, para cor, imagens e ritmos visuais. Considerava-o sensual e embriagante. As cenas dos negros montados em seus cavalos brancos, evoluindo na tela ao som sincopado do canto gregoriano recriado por Morricone, permanecem com o cinéfilo. São momentos definidores de um cinema épico, grandioso. Fazem pensar no que poderia ter sido a adaptação do romance de William Styron, As Confissões de Nat Turner, sobre uma rebelião de escravos nos EUA, que Norman Jewison queria realizar depois do Oscar que recebeu por No Calor da Noite, de 1967, mas que Hollywood impediu, temendo o potencial explosivo que o filme poderia ter na sequência das lutas por direitos civis que fizeram arder as grandes cidades da 'América' naquela década.

É importante asssinalar que Pontecorvo filmou em Cartagena, na fortaleza histórica, que lhe deu o cenário perfeito. Na sua ficção, Walker, pela segunda vez, tem sucesso. Esmaga o movimento, promove um banho de sangue. De volta à casa, no porto, ele ouve uma voz, oferecendo-se para levar sua bagagem. "Your bag, señor?" Por um breve instante viaja no tempo. Será possível? Baixa a guarda, volta-se e é morto por outro jovem negro. O final em aberto - um rato de porto, um simples ladrão, uma vingança? - mostra que a insurreição talvez não tenha acabado. Não se pode esquecer que era 69 e, no ano anterior, no mítico 68, o mundo todo ardera nos movimentos estudantis de contestação. Pontecorvo e Salinas fizeram sua viagem ao século 19 para propor/discutir uma teoria determinista da história, mas de olho no que estava ocorrendo no seu tempo.

O filme virou clássico. Brando havia iniciado a década como o maior astro de Hollywood, mas seus caprichos durante a produção de A Face Oculta e O Grande Motim criaram a fama de indisciplinado e temperamental. No primeiro, chegou a demitir Stanley Kubrick para assumir, ele próprio, a direção. Tudo lhe seria perdoado, se os filmes tivessem faturado alto, mas não. Brando virou veneno de bilheteria e somente em 1972, com dois grandes filmes - O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, que lhe valeu o segundo Oscar, e Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci -, voltou ao topo. Na baixa, seu maior filme foi o de Pontecorvo, falado em inglês. Mas há controvérsia quanto à sua interpretação.

No Dicionário de Cinema, Jean Tulard diz que ele leva o Pontecorvo ao ridículo - não é verdade - com seus tiques. Roger Boussinot, na Enciclopédia de Cinema, vai no caminho inverso - e está certo. Destaca que Brando conseguiu dominar seu estrelismo e os trejeitos do Método para construir um personagem sólido. A discussão talvez seja supérflua, porque Evaristo Márquez captura o olho do espectador, que não consegue desgrudar dele. Sobre Brando, Márquez disse - "Ele nunca me tratou como inferior. Me olhava no olho, e tratava como irmão." Brando morreu em 2004, aos 80 anos. Pontecorvo, em 2006, aos 85. Evaristo Márquez, que era pastor de ovelhas e voltou a ser, após seus 15 minutos de glória, morreu em 2013, aos 73 anos.

O filme está disponível no Cine Petra Belas Artes À La Carte.

Estadão
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