Menina de sete anos, diagnosticada com doença renal policística, sobrevive ao primeiro transplante duplo (rim e fígado) realizado em uma criança no Brasil, marcando um marco médico e emocional para sua família.
Uma porta que dá acesso à área interna do hospital abre e um médico surge buscando uma família na sala de espera. Luciana Pasqual segura a mão do marido e respira fundo. Do outro lado, a notícia que qualquer pai teme: será que a filha sobreviveu à diálise de hoje? Gabriela, com apenas dois anos, passava por sessões diárias, todos os dias, de domingo a domingo. Cada hora ligada à máquina era uma luta contra o tempo. "Será que é a nossa?", perguntava Luciana. "Eles abriam a porta e não era a nossa. Sempre o medo com o alívio: a notícia de morte não era a nossa", contou ao Terra.
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Diagnosticada com doença renal policística ainda na gestação, a menina desafiou todas as previsões médicas e sobreviveu a dois transplantes. A descoberta ocorreu três dias antes do parto, durante um exame de ultrassom de rotina. "Disseram que ela tinha rins policísticos e que não estavam funcionando. Estava tudo organizado, tudo planejado, e tiraram nosso chão", conta a mãe. Sem suporte médico adequado em Foz, Luciana precisou viajar a Curitiba, onde Gabriela nasceu e passou oito dias na UTI neonatal.
"Ela nasceu com uma doença que a gente chama de doença renal policística autossômica recessiva, que é uma doença congênita. Os rins e, em alguns casos, o fígado formam cistos, como bolsinhas com água, que vão comprometendo o parênquima, responsável por filtrar e regular funções do organismo. Infelizmente, a Gabi evoluiu com comprometimento tanto do rim quanto do fígado", explica a Dra. Maria Fernanda Camargo, chefe do Centro de Transplantes Renais Pediátricos do Hospital Samaritano Higienópolis.
Os primeiros meses foram uma sequência de visitas ao hospital, máquinas e fios. Aos dois meses, Gabriela teve uma acidose metabólica grave e foi entubada. Três dias depois, a família já estava em São Paulo, buscando atendimento especializado.
"Com dois meses, ela começou a fazer hemodiálise. A Gabi ficava ligada ao fio 18 horas por dia. Saía do hospital já conectada, terminava a diálise, conectava o cateter à nutrição. Era um processo lento, mas necessário. Esses primeiros dois anos foram basicamente hospital e casa", lembra Luciana.
O primeiro transplante de rim veio em junho de 2020, após seis meses de espera por um órgão compatível. Mas a alegria durou pouco: durante a pandemia, Gabriela contraiu adenovírus e quase perdeu o rim transplantado. "Voltamos para São Paulo, e o fígado dela começou a falhar também. Foi muito difícil aceitar que não era só o rim, era o fígado também. A Dra. Maria Fernanda nos explicou que precisaríamos de um transplante duplo -- rim e fígado -- algo inédito em uma criança no Brasil". A espera foi angustiante: Gabriela recebeu 17 ofertas de órgãos, mas nenhuma era perfeita.
A situação se agravou em setembro de 2023, quando Gabriela desenvolveu varizes esofágicas com sangramentos internos. "Ela poderia morrer a qualquer momento, porque poderia começar a sangrar e não havia como estancar", relata a mãe. A espera por um doador vivo se intensificou, mas nem Luciana nem o pai podiam doar.
O cenário de transplantes no Brasil foi um grave impedimento. Conforme a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, 2024 terminou com 259 crianças aguardando um transplante renal, 118 aguardando um transplante hepático e 69 aguardando um coração. Foram 93 óbitos na fila de espera. "Talvez, se tivessem tido oferta, elas poderiam estar vivas com a gente". Segundo a médica ressaltou, 46% das famílias se negam a autorizar a doação.
Uma campanha nas redes sociais mobilizou 300 voluntários. Uma jovem de 18 anos, também chamada Gabriela, mostrou-se compatível. Mas, no dia anterior à cirurgia, surgiu um doador falecido com órgãos adequados. "Foi um verdadeiro milagre. A cirurgia estava marcada, mas então conseguimos tudo de uma vez. A Gabi tinha cinco anos e passou por uma cirurgia extremamente complexa", lembra Luciana. Segundo a médica, foi o primeiro transplante duplo realizado em criança no Brasil.
"Eu entendo se a família não quiser doar. Mas algo a se pensar é que existem famílias como a nossa que estão passando por isso, que precisam para poder viver, para poder salvar seus filhos e há uma possibilidade. É um gesto grandioso e pode ressignificar a dor", comenta a mãe.
A recuperação foi delicada. O rim apresentou rejeição hiperaguda e Gabriela precisou ser reentubada. "Chegamos a ouvir que teríamos que retirar o rim, porque ela podia morrer. Mas, com muita fé e a ação rápida dos médicos, ela reagiu e conseguimos manter ambos os órgãos", relembra Luciana.
Fim do pesadelo
Hoje, com sete anos, Gabriela vive uma infância plena em Foz do Iguaçu. "Voltamos à rotina, escola, natação, Kumon. Coisas simples, mas que são tudo. A doação de órgãos salvou a minha família inteira", afirma Luciana. A menina não quer perder tempo: anda de bicicleta, patinete, brinca no parquinho e participa ativamente de todas as atividades. "Eu falo: 'Filha, vamos assistir a um desenho?' E ela responde: 'Não, eu quero viver, quero fazer minhas coisas.'"
"Às vezes eu penso e falo: meu Deus, a gente já fez tudo isso? Já passamos por tudo isso? Agora faz um ano que nós estamos voltando, e a vida está no automático. Daqui a pouco meu marido está me ligando, daqui a pouco eu tenho que buscá-la na escola. Eu preciso acreditar que é real".