Se a sociobioeconomia é uma das palavras da moda quando se fala em sustentabilidade, Bia Saldanha é uma das precursoras do assunto no Brasil. Carioca de nascença, a economista mora no Acre há 34 anos, desde que percebeu que não poderia “salvar” a Amazônia vivendo em Ipanema.
Depois de tentar se afastar da moda, da qual vivia no Rio de Janeiro, percebeu que era justamente com ela que poderia mais ajudar a proteger a floresta que tanto ama e a desenvolver as comunidades amazônicas. Hoje, Bia traz no currículo a articulação da parceria entre grandes empresas privadas e produtores locais, sempre incentivando novos mecanismos de remuneração para os produtos e serviços da floresta. Entre as marcas de moda com as quais já trabalhou estão Farm, Veja, Hermès e Ralph Lauren.
“Meu esforço agora é a gente pensar como que a gente pode incentivar, como que a gente pode promover essa economia criativa dos povos da floresta, essa economia autoral, essa economia da cultura, que é uma economia perene, que não precisa de ponte, que não precisa de estrada. Ela precisa de conectividade, ela precisa de fortalecimento da cultura. Ela precisa de territórios vivos. Ela precisa da juventude e nos seus muitos espectros, desde a culinária, turismo ambiental, turismo ecológico, turismo étnico, a música, o canto, a música e o audiovisual”, diz a economista.
Bia é a 5ª entrevistada do podcast Futuro Vivo, conduzido pelo apresentador Victor Cremasco. O podcast conta com treze episódios e faz parte da plataforma de sustentabilidade homônima da Vivo. Os episódios são disponibilizados toda terça-feira no Terra e em plataformas de áudio (Spotify) e vídeo (YouTube). Além de Bia Saldanha, também já participaram Carlos Nobre, Kaká Werá, Gilberto Gil e Denise Fraga.
Eu vejo que a gente tem uma oportunidade por conta dessa nova geração, tanto de ferramentas quanto de atores, agentes e interesse pela floresta, de também fazer prosperar essa economia criativa que eu vejo muito promissora para trazer oportunidades para os territórios e também para os centros urbanos e comunidades urbanas.
Nos passos de Chico Mendes
Bia, que foi uma das fundadoras do Partido Verde, chegou ao Acre pouco antes da morte de Chico Mendes, em 1988, seringueiro e ativista assassinado por grileiros. Chegou a voltar ao Rio, mas em 1991, mudou-se definitivamente para a capital Rio Branco.
“A gente estava fazendo o processo de legalização do partido e viemos para criar relações com o povo do Acre, para estabelecer aqui o partido. E nisso a gente conheceu o Chico Mendes e isso foi uma coisa que mudou completamente a minha vida. A gente teve uma relação muito breve. Na verdade, eu acho que naquele momento ele não sabia nem quem eu era. Eu é que estava muito encantada com aquele personagem e logo em seguida o Chico foi assassinado. Então isso foi uma coisa muito impactante e eu me dei conta de que eu não ia conseguir contribuir e, na época, pensar em 'salvar' a Amazônia de Ipanema, que era onde eu estava trabalhando. Então eu falei 'bom, tem que ir lá'. E aí começa toda a minha história”, conta Bia.
Conhecer a região, segundo ela, foi um “encantamento”. “Eu acho que é uma sensação, ao mesmo tempo, de grandeza e de pequenez. A gente se sente tão pequenininho, e também integrado àquela força tão poderosa”, diz Bia. “Mas acho que o que aconteceu de fato, para mim, foi uma certeza de que eu queria trabalhar e me colocar a serviço daquelas pessoas e dessa floresta."
Eu já voltei em 1989 para o Rio, decidida a fechar minha empresa de moda e me dedicar 100% ao trabalho para a floresta. E aí começa a minha história, a minha saga, a minha aventura amazônica.”
Os povos da floresta
O encantamento não foi só com a floresta, mas com a população amazônica, formada tanto por povos originários quanto por comunidades que chegaram por motivos variados. O “mosaico” de culturas lhe chamou atenção.
“A Amazônia não é só dos povos indígenas, os povos originários, esses povos que estão aqui há milhares de anos. Mas a gente tem um povo que chegou aqui e que se estabeleceu aqui. São povos que também herdaram conhecimentos, que trouxeram conhecimentos, que misturaram conhecimentos com os povos daqui e formaram essa diversidade de pessoas, de povos”, detalha.
Bia fala com orgulho do projeto Amazônia Revelada, que busca identificar sítios arqueológicos na imensidão da floresta amazônica. A economista destaca como a tecnologia e os saberes combinados entre os povos amazônicos estão revelando cada vez mais camadas da região.
“A gente está nesse momento de usar a tecnologia para acessar o conhecimento ancestral. A tecnologia está nos permitindo descobrir, nesse sentido de tirar essa cobertura. E inclusive com o Projeto Amazônia Revelada, a gente tem essa revelação do que está por baixo dessas árvores que foram plantadas. É um conhecimento incrível de uma população que era densa, que era extensa, que era espalhada pela floresta e não esse vazio humano”, diz ela. “A gente vê uma Amazônia complexa, com conhecimentos complexos. E o grande legado de uma Amazônia, de um ecossistema que foi produzido por essa população, com esse conhecimento, com essa sofisticação.”
“Quando a gente chega e aqui você encontra todo esse mosaico de culturas, eu acho que é super importante a gente não só reconhecer, respeitar, mas incluir toda essa gente em qualquer que seja a nossa visão sobre a floresta.”
A economia amazônica
Na chegada ao Acre, Bia começou a pesquisar produtos para o ecomercado, que integra práticas sustentáveis ambientais, sociais e econômicas.
“Quando eu disse que eu queria sair da moda, eu vi que era o que eu sabia fazer”, lembra ela, que resolveu cursar Economia na Universidade do Acre. “Então eu vim saber o que os seringueiros produziam naquele tempo, por causa do Chico. Eles tinham o artesanato tradicional de seringueiros, em que eles davam banho de látex em uns sacos, artesanato tradicional de seringueiro da Amazônia. E eu comecei um trabalho de adequação dessa matéria prima pra indústria da moda. (...) Então criamos uma linha de produtos, lançamos, vendemos, tivemos clientes como a empresa francesa Hermès Sellier, Patagônia, Ralph Lauren. Eu comecei a partir dessa experiência a ser uma militante dessa economia da floresta.”
A partir dali, continuou conduzindo parcerias entre as comunidades locais e empresas de moda. “Fui eu que organizei toda a cadeia produtiva da Veja”, conta Bia, referindo-se à marca de tênis com a qual trabalhou por dez anos.
Em 2014, foi convidada pelas mulheres Yawanawá em 2014 para ajudá-las a organizar a cadeia produtiva do artesanato de miçangas. A parceria dura até hoje e, desde 2017, uma das marcas associadas ao projeto é a Farm. “Essas pulseiras usam toda a riqueza de desenhos, de símbolos, de cores e da magia das mulheres e da cultura Yawanawá.”
“Eu sou carioca, eu vivo no Acre e trabalho na Amazônia desde 1991. Eu tenho laços profundos com esse lugar. Eu tenho filho acreano, eu sou casada com o antropólogo que eu conheci aqui e, enfim, eu criei uma vida e laços muito profundos aqui na floresta."
Cada vez mais, Bia Saldanha mergulha nos estudos sobre as cadeiras produtivas e como elas devem se adaptar às condições amazônicas, e não o contrário. “A gente precisa incorporar o valor, reconhecer, valorizar e remunerar os serviços associados a esses produtos e a essa forma de produzir”, diz a economista, empenhada em promover a economia criativa dos povos da floresta.
“A gente está vendo muitos filmes incríveis sendo produzidos na floresta, com a floresta. A moda superbacana, pulsante, inspirando. E agora, vindo da floresta, a gente tem estilistas indígenas incríveis despontando aí no cenário. Então eu vejo que a gente tem uma oportunidade por conta dessa nova geração, tanto de ferramentas quanto de atores, agentes e interesse pela floresta, de também fazer prosperar essa economia criativa que eu vejo muito promissora para trazer oportunidades para os territórios e também para os centros urbanos e comunidades urbanas."
O trabalho é árduo, mas Bia não se cansa. Vê com otimismo as conexões criadas pelas novas gerações dentro dos povos originários e outras comunidades amazônicas e o espaço cada vez maior que a floresta ganha no noticiário. No final das contas, se diz “orgulhosa da humanidade”.
“Eu acho que a gente tem feito muita burrice, muito bobagem, mas eu acho que o ser humano é autenticamente bom. Na minha experiência enquanto ser humano, o que me orgulha são os meus filhos, é a minha relação com os meus filhos, a minha relação com a minha comunidade. Eu acho que eu tenho orgulho de ter feito as escolhas que eu fiz e de estar a serviço dessa floresta.”