Picape do EcoSport teria salvado a Ford no Brasil

Ideia foi colocada para Detroit, que rejeitou. Picape do EcoSport seria o que é hoje a nova Fiat Strada ou a Toro. Veja outros erros da Ford

15 jan 2021 - 09h08
(atualizado em 16/1/2021 às 11h44)
Renderização de como seria a picape do EcoSport: ideia rejeitada por Detroit.
Renderização de como seria a picape do EcoSport: ideia rejeitada por Detroit.
Foto: Jonathan Machado / Reprodução

Depois da hecatombe que foi o anúncio vindo de Detroit de que a Ford Brasil não vai mais fabricar carros, muitas análises foram feitas e a busca por culpados continua. Não quero entrar aqui na discussão se a Ford está sendo ingrata com o país que lhe acolheu. Quero me concentrar nos erros históricos cometidos pela Ford nas últimas décadas, quase todos eles decididos nos EUA e não no Brasil.

É muito fácil ser engenheiro de obra pronta, por isso todos os erros estratégicos cometidos tiveram alguma razão de ser. O mais triste é que a maioria das decisões não foi tomada pelo time que defendia as cores da Ford aqui no Brasil, mas pelos executivos de Dearborn, em Detroit, sempre com um certo desprezo para o negócio no Brasil. Na minha opinião foram muitos os erros históricos que levaram ao desfecho triste do explosivo 11 de janeiro de 2021.

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Não concordo com colegas que dizem ter sido um erro a substituição do Galaxie pelo Del Rey. Ora, o Ford Del Rey não tinha a potência e o tamanho do Galaxie, mas mantinha o requinte e o conforto que cabiam num Brasil -- e num mundo -- que havia passado por duas crises do petróleo. Um carro mais compacto, mais adequado aos anos 80. A união da Ford com a Volkswagen na Autolatina foi um erro? A união, não; a forma como foi conduzida, sim.

Se a própria Volks, que era líder de mercado, precisava reduzir custos no absurdo ambiente econômico do Brasil dos anos 80, com uma hiperinflação que exigia reajustes diários de preços e corroía de forma cruel os salários, que dizer da Ford? Autolatina foi uma saída para que as fábricas não fechassem. Porém, a Ford não soube manter seu DNA, foi demasiadamente subserviente aos interesses da Volkswagen e perdeu totalmente sua identidade.

Ford Versailles: logotipo da Ford num autêntico Volkswagen levou à perda da identidade.
Foto: Ford / Divulgação

Com a Autolatina, os Ford perderam requinte, conforto e qualidade no acabamento. Mesmo assim, como o mundo dá voltas, o lançamento do Ford Escort significou um novo alento. Melhor ainda quando o carro ganhou a versão XR3. Em pouco tempo o Escort XR3 se transformou em objeto de desejo. Não tinha um motor tão bom quanto o carro exigia, mas estávamos em um mercado fechado. Se tivesse um motor mais moderno, possivelmente o Escort XR3 não teria sido engolido pelo Gol GTi, da Volkswagen, que tinha motor 2.0 e injeção eletrônica.

A ida da Ford para Camaçari (BA) foi outro erro. A empresa optou pelas benesses fiscais do Governo da Bahia e abriu mão de ficar no ABC paulista ou no Rio Grande do Sul. Estrategicamente, do ponto de vista geográfico, a opção gaúcha seria mais interessante, por estar mais perto de outros pólos industriais e também do Mercosul. Isso, entretanto, não foi o principal, visto que anos depois a FCA foi para Pernambuco e isso não impediu seu sucesso.

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A escolha de um câmbio ruim, o Power Shift, automatizado de dupla embreagem, foi decisivo para queimar um ótimo carro, que era o Ford Fiesta. Quando a questão da transmissão foi resolvida, o carro já estava queimado no mercado. Outro erro histórico foi abandonar o mercado de picapes pequenas. A Ford teve a Pampa, inclusive com versão 4x4 baseada no Corcel II. Essa picape foi uma ousadia e durante anos, após sua descontinuação, foi muito procurada no mercado de usados -- um sinal e tanto para o departamento de marketing.

A picape Courier, baseada no Fiesta, já tinha uma concorrência muito mais desenvolvida. Porém, ao invés de aproveitar o sucesso da Ranger, uma das pioneiras no mercado de picapes médias, fazendo uma dobradinha com uma picape pequena, a Ford preferiu investir só no modelo maior. O carro acabou sendo produzido na Argentina, uma decisão acertada, porém, sozinha, tornou a Ford irrelevante justamente no segmento em que ela é a número 1.

Justiça seja feita aos executivos brasileiros, que tinham a ideia de criar uma picape monobloco na plataforma do EcoSport. Ideia genial nascida aqui no Brasil, o EcoSport de primeira geração não foi boicotado pela matriz, em Detroit, e acabou criando o nicho dos SUVs compactos. Bastou pegar um Fiesta, levantar a suspensão, reforçar toda a estrutura e os itens de suspensão, dar uma cara off-road e criou-se um campeão de vendas. O EcoSport levantou a Ford nos anos 2000 e foi líder praticamente sozinho durante 10 anos. Uma década inteira.

Primeira geração já tinha uma proposta de picape, que seria inovadora.
Foto: Notícias Automotivas / Reprodução

Tempo suficiente para a Ford dormir sobre os louros do EcoSport. O carro se tornou mundial, porém a Ford Brasil ignorou a tendência de eliminar o estepe do lado de fora do porta-malas. Insistiu na teoria de que os clientes queriam aquilo. Eis um caso em que um sucesso estrondoso levou ao fracasso definitivo. Até a Land Rover e a Mitsubishi já tinham abandonado a ideia do estepe pendurado no porta-malas, mas a Ford Brasil insistiu e o resultado foi um carro apertado e com uma geringonça que a maioria dos consumidores rejeitou.

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Pior: demorou demais para atualizar a multimídia do novo EcoSport e, com isso, ficou bem atrás de novos rivais que chegaram, como o Honda HR-V, o Jeep Renegade e até o Peugeot 2008. O maior erro relacionado ao EcoSport, entretanto, foi não ter servido de base para uma picape compacta. Detroit dizia que só aceitaria projetos que pudessem ser mundiais.

Enquanto a Ford ficou nessa discussão, a Renault lançou a picape Oroch e a Fiat lançou a Toro. Duas picapes maiores, quatro portas, monobloco (com dirigibilidade de carro e não de caminhão), derivadas do Renault Duster e do Jeep Renegade. Exatamente o que a Ford Brasil queria fazer com o EcoSport e a Ford Motor Company não deixou. Hoje a Fiat tem na nova Strada exatamente o que seria a picape do EcoSport, que provavelmente teria salvado a operação no Brasil.

Se formos aos detalhes, há muito mais. Podemos citar o preço do Ford Ka da primeira geração (muito alto) e a transmissão automática de quatro marchas para o Ford Focus de segunda geração (inadequada), então foi mais um ótimo carro queimado, pois a concorrência já tinha automáticos com cinco ou seis marchas. Podemos citar também a demora na aposta dos motores flex -- por que a Ford tinha que ser a última a aderir a essa tecnologia? 

Até mesmo a segunda geração do Ford Ka, que é ótima, talvez tenha sido um erro estratégico. A Ford passou décadas tentando fazer um carro que derrubasse o Volkswagen Gol. Ficou tão fixada nessa meta que, ao conseguir (o Ford Ka é um Gol evoluído, assim como o Chevrolet Onix), os hatches compactos já não eram tão lucrativos. Havia movimento de migração para SUVs compactos e isso se estende até para a nova picape Fiat Strada. O Ka também optou pela multimídia Sync 2 e foi engolido pelo Onix, que trouxe o MyLink e realmente conectou os motoristas desse segmento. De novo, quando melhorou a multimídia, era tarde.

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Ford Mustang 2008: era o líder nas importações, mas a marca deixou a Chevrolet trazer o Camaro.
Foto: Pastore / Reprodução

Até mesmo com o Ford Mustang a Ford Brasil dormiu no ponto. Antes de o Chevrolet Camaro se tornar uma febre de vendas no Brasil, o muscle car americano mais importado era o Mustang, por alguns anos. Em 2008 as vendas do Ford Mustang subiram para 148 unidades e o carro ficou em 2º lugar no segmento. Porém, ao invés de chamar atenção da Ford, o fenômeno chamou a atenção da GM. No ano seguinte, 2009, novamente o Mustang ficou em 2º lugar e atingiu 177 vendas no ano. A Ford cochilou e esnobou esse nicho, mas a GM entendeu o sinal do mercado e decidiu importar o Chevrolet Camaro, para concorrer diretamente com o Ford Mustang. Matou!

Diante de tudo isso, a Ford Brasil ainda teve que se adaptar às novas determinações de Detroit, que desistiu de fazer hatches e sedãs na maioria dos mercados. De uma forma geral, os executivos da Ford Motor Company não parecem ter pelo Brasil o mesmo carinho que a Ford Brasil tem. O pessoal daqui realmente é dedicado a fazer o melhor, porém é constantemente sabotado por Detroit. Todo mundo sabe como é difícil trabalhar com um chefe que insiste em coisas que não dão mais certo.

Uma pena. Mesmo com erros, a Ford criou uma linda história no Brasil. Se usou subsídios governamentais (como todos os outros fabricantes), também devolveu os impostos mais altos do planeta. Mas isso já é outro assunto.

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