O que a ciência sabe até agora sobre o efeito da proteína spike no corpo

AUTORIDADES DE SAÚDE E PESQUISADORES EXPLICAM DIFERENÇAS ENTRE SUBSTÂNCIA DO VÍRUS DA COVID E AQUELA INDUZIDA PELA VACINA

14 nov 2025 - 13h06

O Estadão Verifica mostrou que médicos influenciadores faturam com o que chamam de "síndrome pós-spike" ou "spikeopatia", uma suposta condição que estaria relacionada à proteína spike induzida pelas vacinas de RNA mensageiro (mRNA) contra a covid-19. Eles se baseiam em um estudo que produziram com uma série de fragilidades e que não prova a existência de uma doença ligada à vacinação contra a covid, que teria sintomas semelhantes aos da covid longa.

O estudo foi retirado de publicação após os editores da revista terem concluído que não há evidências científicas que ligassem a suposta síndrome à vacinação. Eles também apontaram risco em relação à disseminação do protocolo de tratamento descrito no estudo que, segundo afirmaram, também carece de comprovação de eficácia.

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Autoridades de saúde e especialistas consultados pela reportagem explicaram o que se sabe sobre a proteína spike até o momento, tanto a produzida pela infecção natural pelo vírus da covid quanto a induzida pelas vacinas para gerar a resposta imune.

A spike é uma estrutura fundamental para que o vírus SARS-Cov-2 se ligue à célula humana. Devido a essa função, ela é usada como um antígeno nas vacinas para "ensinar" o sistema imunológico a gerar uma resposta em caso de infecção real pela covid.

No desenvolvimento dos imunizantes, são feitas modificações para garantir que a proteína seja mais estável e induza a uma resposta imunológica mais efetiva e duradoura, explicam os especialistas em imunologia Nathália Pereira da Silva Leite e Helton Santiago, membros do Centro Nacional de Vacinas (CT-Vacinas), um grupo de pesquisadores em desenvolvimento de vacinas ligados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Diferentemente do que acontece na infecção natural, quando há uma produção massiva de proteínas virais em muitos locais do corpo, a produção da vacinação é localizada. A ação acontece principalmente no músculo em que o imunizante foi injetado e em células imunológicas próximas, em quantidade bem menor e por tempo limitado.

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De acordo com os pesquisadores, o objetivo é apresentar o antígeno ao sistema imunológico, não causar infecção sistêmica. "A administração dessa proteína ou do RNA que leva à produção dela no organismo é muito mais segura do que a infecção natural e leva a respostas imunológicas de memória muito melhores", disseram.

O imunologista Jorge Kalil, ex-presidente do Instituto Butantan, cita como exemplo um consenso científico publicado recentemente pela Sociedade Europeia de Cardiologia, que concluiu que a incidência de miocardite e pericardite causada pela covid é superior de cinco a 10 vezes a dos casos provenientes das vacinas, e também mais grave e com complicações a longo prazo, incluindo morte.

"O artigo analisou uma série de estudos publicados nas revistas de primeira linha para chegar a um consenso", diz Kalil. "A sua conclusão é um exemplo que demonstra o quanto a proteína spike da infecção pelo vírus é em volume muito maior e tem um nível de gravidade absolutamente superior à induzida pela vacina que, em geral, é rapidamente degradada pelo organismo".

A professora Claudia Figueiredo, neurocientista do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também ressalta que os imunizantes contra a covid-19 realizam um processo "transitório, localizado e seguro" no organismo, que não resulta em níveis sustentados de spike circulante e não atinge o sistema nervoso central.

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A cientista é autora de um estudo, publicado em março de 2023, sobre a ligação da proteína spike da infecção do vírus com disfunções cognitivas e inflamação persistente em testes feitos com animais. Segundo Claudia, as conclusões da pesquisa e outras evidências científicas demonstraram que a proteína pode se acumular nas barreiras do crânio, meninges e cérebro, desencadeando sintomas compatíveis com a síndrome pós-covid, ou covid longa.

"No entanto, há uma diferença crucial: as vacinas de mRNA não reproduzem esse mecanismo patológico", disse a cientista. "Pelo contrário, estudos clínicos e populacionais mostram que a vacinação reduz de forma significativa o risco de desenvolver covid longa, inclusive seus sintomas neurológicos".

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ressaltou que estudos robustos, também feitos em humanos, mostram que a proteína spike induzida pelas vacinas mRNA "cumprem o seu papel de estimular a resposta imune, gerando a produção de anticorpos, sem causar doença". Segundo o órgão de vigilância, não há nenhuma evidência confiável de que a spike induzida pelos imunizantes aprovados causem qualquer doença ou reação adversa além das descritas na bula.

Em nota enviada ao Verifica, a Agência Europeia de Medicamentos (sigla EMA, em inglês) disse que, até o momento, "não há evidências, no vasto conjunto de dados avaliados por órgãos reguladores internacionais, que sugiram que os sintomas identificados com a covid longa sejam um efeito colateral da vacinação".

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A EMA explica que, no caso das vacinas de mRNA, a proteína spike é produzida de forma transitória pelo corpo e estabilizada em uma conformação específica projetada para expor o organismo a certas partes da proteína e aumentar a resposta imune a ela.

Já durante a infecção natural pela covid, o vírus se replica nas células humanas e produz a proteína spike em uma conformação nativa, que muda durante o ciclo de vida do vírus. Neste último caso, a EMA explica que a spike é usada para criar novos vírus que se espalham por todo o corpo.

"Essas observações sugerem que a proteína spike produzida pelas vacinas de mRNA e aquela produzida após infecção pelo vírus SARS-COV-2 podem agir de forma diferente no corpo humano, embora isso precise ser melhor caracterizado", informou.

Em setembro de 2024, o Ministério da Saúde explicou que "alegações de que a spike das vacinas causa danos ao corpo não têm base científica". Segundo a autoridade de saúde, a presença da proteína spike no organismo é temporária, sendo degradada rapidamente, em torno de 30 dias, no período suficiente para treinar o sistema imunológico.

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Pesquisas sobre possíveis efeitos negativos da spike de vacinas ainda são iniciais

Os cientistas Nathália e Santiago explicam que relatórios ocasionais e preliminares detectaram a spike em indivíduos que receberam as vacinas de mRNA por períodos mais longos e com sintomas persistentes. No entanto, "esses achados são raros, sujeitos a vieses e estão em investigação". Até o momento, a maioria das evidências indica que a proteína gerada pela vacina é eliminada em curto prazo.

Pesquisadores citaram ao Verifica que a principal investigação sobre o assunto é um estudo feito pela Universidade de Yale, em fevereiro deste ano. A publicação ainda está em pré-print e deve passar por revisão de outros pesquisadores - etapa essencial para validação científica. Os cientistas avaliaram dados de 42 pessoas com queixas de sintomas semelhantes à covid longa após a vacinação. Outros 22 indivíduos imunizados que não tiveram efeitos também foram avaliados.

Uma das descobertas foi de que pessoas com características do que o estudo chama de "síndrome pós-vacinação" apresentaram níveis mais elevados da proteína spike do que o grupo de controle, podendo ser detectada mais de 700 dias após a última imunização.

Contudo, a coautora sênior do estudo, Akiko Iwasaki, disse, em entrevista para o portal de notícias de Yale, que ainda não se sabe se o nível da proteína spike identificado nos indivíduos foi responsável pelos sintomas crônicos, "porque havia outros participantes com a síndrome que não apresentavam nenhuma proteína spike mensurável".

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O estudo também referencia pesquisas prévias ao citar que, em experimentos feitos com animais, foi detectado que as "cápsulas de gordura" (nanopartículas lipídicas-LNPs) que carregam o mRNA da vacina poderiam atravessar uma barreira protetora do cérebro. Isso poderia levar à produção da proteína spike no local, causando sintomas neurocognitivos. O mecanismo é apontado pelos cientistas como uma das hipóteses pelas quais as vacinas poderiam contribuir com sintomas de longo prazo em indivíduos suscetíveis.

Outro coautor sênior da pesquisa, Harold Hires Jr, afirmou ao portal de Yale que "o trabalho está apenas começando, e mais estudos são essenciais para orientar o diagnóstico e o tratamento". Segundo os pesquisadores, a investigação tem a intenção de orientar estratégias para indivíduos afetados, mas as descobertas científicas são iniciais e requerem confirmação adicional.

O virologista Flávio Guimarães Fonseca, da UFMG, avalia que ainda não está claro, como apontado no estudo de Yale, se a síndrome pós-vacinal está ligada à presença da proteína spike no organismo dos pacientes afetados.

"Em alguns casos, a spike não é encontrada nos pacientes que têm a doença. Como citado pelos cientistas [de Yale], há a necessidade de ter um estudo mais completo para avaliar se essas pessoas não foram também infectadas [pela covid]".

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Fonseca afirma que as investigações sobre a síndrome pós-vacina ainda estão em fase inicial.

"Ainda não há uma clara evidência em relação aos sintomas e a etimologia da doença, o que poderia estar causando", disse. "É algo mais exploratório, do que uma condição universalmente reconhecida pela medicina".

O pediatra infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), explica que, como qualquer vacina, é esperado que haja uma biodistribuição para outras partes do corpo além dos gânglios do braço, onde há produção de uma resposta imunológica mais eficaz. No entanto, segundo ele, não há comprovação de que o mecanismo cause danos.

"Você aplica uma vacina de tétano, de hepatite, de HPV, de pneumonia, de meningite, e é esperado que, para além do braço, ocorra uma biodistribuição para outras partes do corpo", disse Kfouri. "Há estudos que reconhecem uma persistência de até 30 dias aproximadamente do mRNA da vacina covid nos gânglios do braço, fígado, baço e coração, mas os últimos dados mostram que não há nenhuma correlação clínica com isso".

Sobre a biodistribuição das nanopartículas lipídicas (LNPs) das vacinas de mRNA para áreas "indesejadas" do corpo, a Anvisa afirmou que, embora estudos pré-clínicos, ensaios clínicos de fase 1, 2 e 3 e dados de vida real mostrem que a LNPs possam se distribuir para órgãos como fígado, baço e linfonodos, não há evidência de danos decorrentes dessa distribuição ou decorrentes, de forma geral, da aplicação de vacinas mRNA.

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"Não há nenhuma evidência confiável de que as LNPs, ou as vacinas mRNA aprovadas pela Anvisa, causem qualquer doença ou reação adversa além das já descritas na bula, que são consideradas aceitáveis para vacinas", diz o órgão.

O Verifica procurou a Pfizer e a Moderna, que produzem as vacinas de mRNA contra a covid aprovadas no Brasil. A Moderna não respondeu. Já a Pfizer explicou que as LNPs são projetadas para entregar o mRNA às células musculares no local da aplicação. No entanto, estudos indicam que uma pequena fração pode alcançar outros tecidos, o que, segundo a empresa, "é esperado em qualquer tecnologia semelhante".

"Não há evidências científicas robustas de que essa biodistribuição cause danos comprovados ao organismo humano. Os estudos de farmacovigilância e ensaios clínicos não identificaram toxicidade relevante ou efeitos adversos graves relacionados à biodistribuição das LNPs das vacinas de mRNA", disse a Pfizer.

A farmacêutica acrescentou que pequenas quantidades da proteína spike podem ser detectadas em um curto espaço de tempo na circulação, mas não há evidência de que isso cause danos.

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