Terezinha Gonzaga, artesã de Caruaru e reconhecida como Patrimônio Vivo da cidade, é celebrada por sua trajetória no artesanato em barro, inspirando gerações e recebendo homenagens por sua contribuição à cultura nordestina.
Em meio às ruas enfeitadas de bandeirinhas coloridas, que dão o tom do São João em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, um ateliê chama a atenção dos turistas que invadem o Alto do Moura nessa época do ano. No bairro, onde 90% da população é composta por artesãos, segundo dados da Associação dos Artesãos e Moradores do Bairro (ABMAM), as centenas de peças de barro dividem espaço com a decoração junina ao som do bom e velho forró.
O lugar é simples e bem organizado. Todo azulejado. Mas, logo na entrada, um letreiro feito de madeira revela a importância do local: “Ateliê de Terezinha Gonzaga - Patrimônio vivo de Caruaru”. E quem faz as honras de nos receber é ela, o próprio patrimônio. "Prazer. Meu nome é Terezinha Gonzaga, sou patrimônio vivo do nosso Caruaru", disse ela.
Apesar do nome indicar algo pomposo, dona Terezinha é só simpatia e humildade. Rapidamente, coloca todo mundo pra dentro. Oferece água, um lugar para sentar, rodeado de muitas peças de barro. Nas prateleiras, há vasos de todos os tamanhos, cumbucas e figuras nordestinas conhecidas como A Banda, Namoradeiras, O Lampião e várias Virgens Maria, de quem é devota. Pintados à mão, Terezinha conta.
Ao Terra, ela conta que, assim como vários artesãos da região, aprendeu o ofício com os pais. “Eu comecei muito cedo. Eu sou daqui do Alto do Moura mesmo. Nasci aqui. E meu pai e minha mãe eram feirantes. Levava panela, pote, prato para a Feira de Caruaru. E eu venho de uma família assim, que não tinha muito recurso e sobrevivia do barro”, conta.
“Meu pai me levava para a feira. Era numa carroça de porco. Enchia de pote, de panela… Era uma alegria. Sábados e quartas eram dias de festa porque ia para a Feira de Caruaru, vender panela e pote. E quando eu chegava lá, eu via, muito pequenininha, 7 anos, minha mãe vendendo. Vendia cavalo de barro, panelinha para criança brincar, e meu pai, pote, panela. Aí, eu comecei a fazer, mexer no barro. E aprendi rápido”, relembra sem esconder o sorriso.
Desta forma, chegaram os primeiros clientes, mas, a verdadeira mudança em sua arte aconteceu após a chegada do homem de quem herdou o sobrenome.
Terezinha e Gonzaga
Conhecido como um dos principais mestres da cidade, José Gonçalves Simões, popularmente conhecido como Gonzaga, faleceu em janeiro de 2024, vítima das complicações de uma doença degenerativa. Apesar de ter mais de um ano da partida do artesão, a perda ainda é recente para dona Terezinha, que relembra com uma emoção apaixonada cada detalhe da primeira vez que viu o falecido marido.
“Um certo dia, eu estava brincando de roda na rua e assim parou um carro. Desceu um rapaz muito elegante que vinha de São Paulo, visitar a mãe dele aqui. Aí, me perguntou onde era a casa da mãe dele e eu ensinei. E daí em diante, nós nos casamos. Já estava escrito”, conta Terezinha com um brilho no olhar.
Em todos os cantos do ateliê há sinais do amor dos dois. No salão onde as peças são vendidas, há uma grande fotografia de Gonzaga, ao lado da mesa de trabalho de Terezinha, há mais algumas — desta vez acompanhados dos familiares, mas sempre com ele junto. O andar de cima foi transformado em um pequeno museu da trajetória do casal, com pertences favoritos do mestre, como o rádio que ele gostava de usar para trabalhar, chapéu e a última peça feita por ele em vida. Tudo mostrado com muito carinho e orgulho.
Terezinha conta que fizeram seus nomes no artesanato pernambucano juntos. “Ensinei ele a fazer a peça. Ele tornou-se um oleiro muito procurado em Caruaru. Trabalhava para colunista, decorador, colecionador. O Gonzaga foi muito procurado para fazer a peça. E assim, eu casei, tive cinco filhos”, diz.
“Meu marido começou a trabalhar e nós começamos a crescer. Encontrar um caminho mais fácil de seguir através da nossa arte. Graças a Caruaru, que é o berço da arte. Mas o destino mudou um pouco. Quando eu estava já no auge da minha arte, meu esposo adoeceu e parou de andar. Ai, eu entrei numa história que não era o que eu esperava”, conta Terezinha.
Gonzaga viveu 25 anos acamado, sem poder andar e falar. Apesar da condição, a esposa não lamenta e diz que graças ao ocorrido aprendeu a dar sem receber. “Nesse tempo, eu não parei. Cada dia, eu desenvolvia peças diferentes e assim me tornei Patrimônio Vivo da minha cidade”, destaca.
“Eu segui, ensinei meus filhos. Eu já tinha cinco filhos e meus filhos se tornaram artesãos bons. Tão quanto o pai. E todos os cinco, não obriguei eles a trabalhar no artesanato, mas ensinei o caminho e assim eles seguiram o artesanato, essa arte maravilhosa que nós temos na mão”, diz com alegria.
A artesã conta que o marido morreu em seus braços, no dia do aniversário de casamento deles. Em um suspiro após ouvir da esposa que o amava, Gonzaga partiu. “O suspiro mais lindo do mundo”, diz emocionada.
“A família é uma raiz. A nossa família é o esteio que nos coloca de pé, é o significado da nossa vida. E eu sempre coloquei minha família como minha prioridade, mas a gente sabe dividir. A gente tem um coração que dá pra amar todos, eu aprendi a dividir. Dividir pra mim, pra meus filhos, pro meu marido, pra minha família, meu pai, minha mãe, quando tavam morando aqui, hoje, estão com Deus. Meu coração, ele tem muito amor. Amor pelo que eu faço, amor pelo que eu crio cada dia”, celebra Terezinha.
Aos 60 anos, Terezinha continua trabalhando com o barro. Ela conta que se inspira no amor para produzir cada peça. “Amor pelo que se faz. Amor pelo crio a cada dia”, reflete.
“Eu sempre coloco um pouquinho de mim. E amor também pra receber esses turistas que vêm, esses anjos que chegam pra nos visitar e conhecer um pouquinho da nossa arte. A gente tem que ter algo de bom pra mostrar a eles também. E assim eu recebo aqui graças a Deus. Todo ano, na época do São João, é a época que nós temos uma quantidade bem maior de visitantes. E a gente se prepara com nossa arte, com nossas peças. E também com os braços abertos pra receber eles”, destaca.
Segundo a artista, enquanto puder, deseja passar o seu conhecimento para as próximas gerações. Com frequência, dá oficinas para quem deseja aprender. O neto, Lucas, de 12 anos, é um dos aprendizes dela.
Patrimônio vivo
O registro de “Patrimônio Vivo” foi instituído por lei na cidade em 2019. A ideia é valorizar figuras culturais locais ainda em vida escolhidas pelo próprio povo, por votação popular, ou por representantes da Fundação de Cultura de Caruaru e do Conselho Municipal de Política Cultural. Ao todo, são 20 grandes nomes, entre eles está Terezinha Gonzaga.
“Quando eu recebi o título de Patrimônio Vivo, foi um dia de muita emoção porque eu vivi criança, correndo no Marco Zero de Caruaru. Muitas vezes sem sandália. E, hoje, receber o título, para mim, foi uma grande honra”, diz a mestre artesã.
Não é a primeira vez que a artista é homenageada. Em 2023, foi uma das artesãs cuja história foi retratada na Sapucaí, no Rio de Janeiro, pela escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Em 2024, ela também foi celebrada no São João de Caruaru. Neste ano, pelo Grupo Boticário no lançamento do novo Lis, inspirado nas mulheres nordestinas, e nos palcos de teatro com a peça “Terezinha: Coração de Barro”.
“Isso, pra mim, completa a minha alegria porque é muito bom a gente ser reconhecido em vida, que a gente vê a nossa história. [...] Hoje, sou realizada. Primeiro, sou muito grata. Grata a Deus por eu ter nascido em Caruaru, por ser artesã. Estudei pouco e me considero uma pessoa que fez faculdade porque eu fiz o meu barro. Aprendi tudo no barreiro de barro”, celebra.
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** A repórter viajou para Caruaru a convite do Boticário.