O lento e duro exercício de aprender a questionar

"Pai, esses caras foram os melhores do mundo!"

8 jan 2022 - 06h00
Você é do tipo que se questiona o tempo todo?
Você é do tipo que se questiona o tempo todo?
Foto: Foto: Tumisu / Pixabay

Eu estava lendo e ouvi a narração do jogo do meu filho, já tecendo loas que agora é o Villani e não o Tiago Leifert, de repente... "Stoichkov... toca para Haggi..."

Peraí, how come? Parece que tem uma modalidade aí desse joguinho em que você monta seu time podendo escolher TODOS OS JOGADORES possíveis... e ele escolheu o Stoichkov e o Haggi!

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Seria como se numa possibilidade de orgia hipotética, podendo escolher todas as mulheres do mundo, você chamasse, sei lá, a Tati Bernardi (aka a pessoa mais chata do mundo de todos os tempos) e a Cláudia Leite!

- "Pai, esses caras foram os melhores do mundo!"

Aí é complicado… quem disse isso? Só podem ter sido ELES… os youtubers, tiktokers ou coisa que o valha. Outro dia eu descobri a existência desse tal de Casimiro e o meu relacionamento com o Duda já melhorou 72% só com o fato de eu saber quem é esse cara. 

Uma vez eu disse que acreditava fortemente que o Felipe Neto poderia vir a se tornar presidente do Brasil, se quisesse, e não me levaram muito a sério. São pessoas que não têm filhos ou não sabem muito bem o que os filhos consomem. 

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Ou, então, claro, os alecrins dourados nascidos no campo sem serem semeados, que criam os filhos sem tela, alimentação vegana, escola construtivista e a coisa toda. 

Mó respeito. Mas não chegam a 1%. 

Eu só lamento porque esses malucos têm um poder de influência tal, que, sei lá, poderiam estar usando pra dizer que  PASSAR DE ANO NO TERCEIRO BIMESTRE É DO C... ou que COMER VERDURA E SALADA É TOPZÊRA! 

Mas não, falam de um cara da Romênia e outro da Bulgária. E sim, eu acho que um certo determinismo geográfico ruim pesa na hora de avaliar se um cara foi bom ou não.

Não faz tanta diferença, mas “entrando no mérito”, vi uns oito jogos do Haggi em Copa do Mundo, era bom de bola. O Raphael Veiga é melhor do que ele. O Arrascaeta, então...

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Sobre o cara da Bulgária (lugar cuja existência nunca foi de fato comprovada, de acordo com Campos de Carvalho, em quem eu confio), vi a participação na Copa de 94, com a presença do cara com a melhor barba de todos os tempos (Trifon Ivanov) no time, mas pesa e muito o fato de que naquela partida em que o Telê passou o carro por cima do Cruyff, o Stoichkov foi encontrado no bolso do Pintado!

Do Pintado!

Eu sei que em matéria de futebol e no geral sempre houve um certo desprezo das pessoas de um modo geral e até da imprensa, pela cultura data-driven. Jornalistas que trouxeram, com esforço e abnegação, alguns dados estatísticos até hoje são tratados como chatos ou "gente que nunca chutou uma bola na vida".

E sinto que isso está piorando... esses caras aí, influencers/youtubers, simplesmente criam umas realidades paralelas, seja com Hagi, com Stoichkov ou com Romário e Ronaldo, que dificultam a nossa vida.

Nós, os pais, temos a árdua missão de cortar o barato dos nossos filhos e trazer a verdade. Que aquela declaração de tal jogador sobre o que via o Ronaldo fazer nos treinos tem muito menos valor do que o que ele, de fato, conquistou.

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E eu sei que uma certa romantização dramática faz parte do jogo, mas talvez estejamos chegando ao ponto de estabelecer uma fronteira entre o que é Storytelling e o que é Bullshittelling.

Porque pode parecer um exagero, mas de Hagi e Stoichkov para terraplana, movimento anti-vacina e coisas bem mais sérias, não existe uma distância tão grande.

E não se trata de escolher em quem acreditar e sim, em treinar, praticar, exercitar muito o ato de questionar.

Porque se o meu filho, que sabe do meu interesse psicótico por futebol, ouve falar de dois jogadores dos anos 90 de países meio obscuros e já escala no seu “time de todos os tempos” sem nem falar comigo… 

Além de ferir a minha vaidade, ele deixa claro em quem escolhe acreditar sem questionar. E com todo o respeito à sua liberdade de pensamento na adolescência, é meu papel dizer a ele que precisa no mínimo validar as informações que recebe.

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Inclusive de mim.

(*) Randall Neto é escritor, produtor de conteúdo e copywriter.

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